Tudo começou com minha estranha dificuldade de cumprimentar pela segunda vez pessoas que eu já havia conhecido. Como não entendia minha atitude, ora pensava que meu egocentrismo fosse orgulho, superioridade; ora, ao contrário: pensava que era vergonha, timidez, solidão mórbida. Cheguei a desconfiar de que seria uma pessoa preconceituosa sem saber, principalmente com as pessoas especiais. De toda forma sempre fui considerado uma pessoa excêntrica, autoritária e egocêntrica. Após anos de trabalho e tentativas sinceras de mudar, esse traço de caráter não só persistiu, como se aguçou em relação a situações específicas. Na verdade, o egocentrismo travestia a dificuldade de troca afetiva e emocional. Eu fingia ser autoritário e excêntrico para esconder de mim mesmo meu transtorno comportamental.
Mas, de uns tempos que resolvi assumir a forma que sou, ao invés de tentar modificar os aspectos nocivos mais marcantes de minha personalidade. E assim fui convivendo com meu isolamento e com minha luta solitária contra as instituições. Então, aos 47 anos de idade, 25 dos quais voltados para auto-conhecimento, descobri que tenho síndrome genética de Asperger, uma forma de autismo de alta funcionalidade, caracterizado, por um lado, pela dificuldade de sociabilidade e de expressão emocional, e por outro, por várias capacidades hiper-desenvolvidas.
Houve, para mim, uma inversão de perspectiva entre minha prepotência (sempre considerei um gênio) e minha impotência (um gênio incompreendido e mal utilizado). Antes eu me achava diferente num sentido de superioridade e acabava sempre me frustrando comigo mesmo e me sentindo inferior. Ao compreender minha diferença como uma deficiência e as capacidades resultantes como compensações secundárias, estou me aceitando melhor e entendendo minha real potência. Ao aceitar e compreender minha deficiência cognitiva, hoje estou me adaptando, ultrapassando definitivamente a contradição que me forjou e redimensionando melhor as qualidades compensatórias, as resiliências que desenvolvi.
Resilie ... o que?
Resiliência é uma noção proveniente da física, referente à propriedade de alguns materiais de, acumular energia quando exigidos ou submetidos a estresse, voltando em seguida ao seu estado original, sem qualquer deformação - como um elástico ou uma vara de salto em altura, que se verga até um certo limite sem se quebrar e depois retorna com força, lançando o atleta para o alto. Resiliência para a física é a capacidade de um material voltar ao seu estado normal depois de ter sofrido pressão.
Há duas transposições diferentes deste conceito físico para outras áreas do conhecimento: a da psicologia (também adotada por diferentes tipos de especialidades médicas e biológicas) e a da administração de empresas (e também da programação neurolinguística). A psicologia define resiliência como a capacidade do indivíduo lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse, risco - sem entrar em surto psicológico. E para administração de empresas, resiliência significa a capacidade de uma empresa ou corporação de se adaptar às mudanças no ambiente social em que estão inseridas, reformulando estratégias e processos de negócio para atender a novas exigências do mercado e da sociedade. A maoria dos estudos psicológicos tem foco no indivíduo, assim como os estudos administrativos tomam organizações como objeto, mas também há estudos sobre resiliência coletiva na psicologia e resiliência individual nos estudos sobre administração.
Em ambos os casos, a resiliência é a capacidade concreta de retornar ao estado natural de excelência, superando uma situação critica, mas de formas diferentes. A resiliência administrativa está mais para tirar vantagem das adversidades, enquanto a resiliência psicológica dá ênfase ao desenvolvimento de capacidades compensatórias de uma deficiência, como o cego que tem a audição ampliada. Tal diferença se dá porque os administradores ressaltam mais o desenvolvimento dos efeitos colaterais compensatórios secundários (a audição ampliada), enquanto os psicólogos enfatizam que o fator determinante é a deficiência primária (a cegueira). No caso de minha síndrome, devido a o subdesenvolvimento emocional em relação aos outros, superdesenvolvi a capacidade mimética de representação.
Vou descrever a resiliência que desenvolvi para compensar minha deficiência, deixando para falar das características mais difíceis da síndrome em um segundo momento. Devido a minha dificuldade de comunicação emocional, tornei-me um excelente jogador de Tarô. Foi a forma que encontrei de me relacionar intimamente com as pessoas. E o tarô, talvez seja preciso explicar, não é simplesmente um jogo de cartas, mas um jogo de identidade simbólica. Também é preciso dizer que o Tarô apenas coroou uma forma peculiar que desenvolvi desde criança de me comunicar diretamente com o inconsciente das pessoas, através da combinação das linguagens de verbal e visual. A dificuldade de me comunicar diretamente de uma forma emocional me propiciou transferir e contra-transferir conteúdos psíquicos com facilidade. De forma intuitiva, minha mente mimetiza a outra mente, compreendendo-a e oferecendo a mente mimetizada uma imagem objetiva de si mesma através do meu olhar. E o tarô e a síndrome permitem-me partilhar da vida íntima das pessoas em um contato ‘frio’ com suas cargas afetivas. Uma indiferença diferente do mero descaso ou da insensibilidade do desprezo: a crueldade ou impiedade.
Bom, falei até aqui da minha resiliência (da audição ampliada), agora vou falar da minha deficiência (da cegueira).
De saída: meu comportamento distante é bastante antipático. A primeira impressão quase nunca é positiva. Isto acrescido a uma postura competitiva – “metido” - geralmente é interpretada como uma afronta, como uma invasão territorial. Quem me compreende e passa dessa primeira impressão negativa, acaba gostando de mim, até que, em determinado momento, eu deliberada ou involuntariamente a machuco com verdades inconvenientes. Ocorrem transferências não-analíticas de conteúdos negativos e eu acabo incitando o que há de pior em cada pessoa – como se a vida fosse um jogo de tarô sem cartas.
Mas, as pessoas machucadas não reconhecem sua própria negatividade e a projetam sobre minha pessoa (e os que reconhecem a sua negatividade se afastam magoadas). Ninguém nunca me agradeceu pela minha contribuição ao seu crescimento. Eu mostrava o que havia de pior nas pessoas e elas me odiavam bastante por isso. Além do que, eu nunca soube como fazer amigos. Sempre dei muitos e muitos presentes para conquistar-lhes a confiança e os abandonando afetivamente. Descobri Ludwig Von Beethoven, Amadeus Mozart e Andy Wharol – entre outros prováveis portadores da síndrome - faziam o mesmo.
Também apresento vários outros sintomas comuns à síndrome. Sempre fui um colecionador compulsivo (álbuns de figurinhas, História em Quadrinhos e Tarôs) com alguns interesses específicos. Tenho um grande gosto pelo silencio e pela solidão. E o desejo de ser invisível já me rendeu até apelidos. Tenho momentos recorrentes de mal-humor e de ansiedade, em que perco o contato visual e fico monossilábico. Alfabetizei-me sozinho; tive dificuldades motoras e fonológicas, que superei tardiamente de formas criativas; apesar de um desempenho intelectual acima da média, sempre apresentei dificuldades de integração e de adaptação escolar.
Sei que me acostumei com a situação de ‘todos contra mim’ (na verdade, era ‘eu contra todos’) e a conviver com uma imagem pública distorcida da minha pessoa. Isto fez de mim uma pessoa forte em vários sentidos. Porém, me levou também a um beco sem saída, a uma vida solitária e incapaz de crescimento com autonomia interdependente. Com o tempo, minhas limitações tornaram-se evidentes para mim e para todos. Como alguém tão desenvolvido no campo das idéias pode ser assim tão estúpido no campo emocional? Como alguém que dedica tanto tempo e energia ao próprio desenvolvimento pode apresentar tantos e tão contraditórios aspectos negativos em sua personalidade? Por que considero todos tão falsos e sinto que todos estão não apenas me enganando (o que seria uma simples paranóia), mas enganando a si mesmos?
Meu jeito frio e distante adicionado minha incontinência verbal (em parte decorrente da falta de contexto analítico de minhas transferências pessoais) foram sempre interpretados (às vezes, por mim mesmo) como se eu fosse maldizente e cruel. E, certamente, quando me encontrava deprimido pelo meu desajuste, via e falava sobre o que havia de mais negativo de uma forma aparentemente cínica. Não quero com isso dizer que minha síndrome justifica minhas fraquezas de caráter, mas, a verdade é que meu transtorno comportamental tem condicionantes cognitivas de fundo genético, impossíveis de serem superados pelo desenvolvimento moral ou espiritual.
Quando “a ficha caiu” foi como se eu encontrasse a solução de um quebra-cabeça, uma imagem construída a partir de vários anos de observação através de diferentes formas de autoconhecimento. É um grande alivio e uma grande humilhação, descobrir que se é uma pessoa especial. Houve, para mim, uma inversão de perspectiva entre minha prepotência e minha impotência. Antes eu me achava diferente num sentido de superioridade e acabava sempre me frustrando comigo mesmo e me sentindo inferior. Ao compreender minha diferença como uma deficiência e as capacidades resultantes como compensações secundárias, estou me aceitando melhor e entendendo minha real potência. Aliás, houve diversos tipos de readaptação em minha auto-imagem. Algumas foram naturais. Passei a me sentir como se tivesse ‘remando contra a maré’ durante toda a vida e que a partir de agora eu ‘vôo a favor dos ventos’. Outras estão sendo difíceis. Distinguir minha ‘vulnerabilidade’ de minha ‘autopiedade’, por exemplo. Antes, eu não me dava o direito de ser vulnerável, pois isto seria uma fraqueza inaceitável. Já havia percebido isto, mas não sabia a verdadeira origem do medo de expor minha fragilidade.
Nasci no Rio de Janeiro, Brasil, em 1961. Sou o quinto filho de uma família de classe média baixa. Meu era bancário e minha mãe, doméstica. Meus irmãos mais velhos tiveram grande importância na minha formação. Francês foi psicanalista; Jurema, socióloga; e Carmi (Maria do Carmo), professora, poeta e escritora. Meu irmão Fred foi empresário e executivo de uma empresa multinacional. De certa forma, eu sou uma re-interpretação dessas pessoas e das situações que elas viveram. Também há minha irmã caçula, Maria Claudia, professora de design e produtora de vídeos de animação. Eu e ela somos ‘temporões’, isto é, nascemos bem depois dos irmãos mais velhos e fomos criados por meus pais já em idade avançada, quando os outros já tinham casado e saído de casa. Aos 12 anos e meio, minha família foi morar em uma cidade pequena, Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, Nordeste do Brasil. Eram tempos sombrios da ditadura militar e mais do que uma alienação da realidade social, a Contracultura foi para minha geração um alento em meio desesperador vazio cultural imposto pela censura.
Em 1978, passei em primeiro lugar para o Curso de Jornalismo, da UFRN, mas motivado pelo clima de redemocratização do país, abandonei o curso e fui morar no Rio de Janeiro. De 1979 a 82, cumpri rigorosamente a iniciação prescrita pelo jornalista ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda: “Todo brasileiro com coração entra no Partido Comunista aos 18 anos; todo brasileiro com cabeça abandona o Partido Comunista aos 21”. Logo após este breve flerte com o marxismo, em que trabalhei em jornais de esquerda e militei no movimento estudantil, e, posteriormente, durante minha descoberta prática da psicanálise e de Freud, suspeitei que o pensamento objetivo que explica a vida social a partir das necessidades econômicas e instintivas nunca chegava à compreensão real das motivações humanas. Até minha graduação como jornalista em 1985, na Faculdade de Comunicação e Turismo Helio Alonso (FACHA), me dediquei basicamente à boemia, à poesia e a escrever roteiros para Histórias em Quadrinhos.
A partir de então me dediquei ao estudo teórico e prático das diversas correntes de pensamento esotérico, lendo criticamente livros de diferentes tendências e freqüentando várias modalidades de terapias alternativas. Em 1986, tive o privilégio de conhecer o padrinho Sebastião Mota e de me fardar, no dia de São João Batista, na Doutrina do Santo Daime. Dentre as muitas mudanças desencadeadas por este fato, ressalto uma reaproximação espiritual de minha família e das práticas mediúnicas kardecistas em que fui educado. Em 1988, no dia 17 de novembro, quando a Umbanda completava exatamente seus 80 anos, cheguei à casa do Caboclo Tupinambá e também me iniciei no culto. Morei na Amazônia de 91 a 95, trabalhando em condições e atividades que variaram desde professor primário no interior da floresta, no município de Pauiní, do Estado do Amazonas, até editor de telejornal em Rio Branco, capital do Acre. E de 95 até 2008 me tornei professor de comunicação social na UFRN, onde também fiz mestrado e doutorado em ciências sociais. Durante esse período escrevi vários artigos e livros, tanto sobre assuntos esotéricos como sobre temas científicos, políticos e culturais.
Como pesquisador na área de comunicação social, trabalho com teoria da complexidade (Edgar Morin, Humberto Maturana, Boris Cyrulnik), cibercultura (Pierre Levy, Derick Kerckhove) e comunicação política (John Thompson, Anthony Giddens). Minha dissertação de mestrado trata do método hermenêutico (teoria da interpretação) no campo das ciências sociais e minha tese de doutorado de sua aplicação às quatro primeiras eleições presidenciais de Luis Inácio Lula da Silva.
Do ponto de vista do pensamento esotérico, tenho uma profunda afinidade e uma antiga preferência pelos autores contemporâneos de caráter anti-platônico (Krisnamurti, Steiner, Gurdjieff, Castaneda, Osho, Ken Wilber, Miguel Ruiz, para citar os principais), que dão ênfase ao autoconhecimento e ao descondicionamento da consciência.
Minha página pessoal é: http://www.ufrnet.br/~marcelobolshaw
Notas sobre síndrome de asperger, psicologia cognitiva comportamental - Marcelo Bolshaw Gomes
sexta-feira, 12 de junho de 2009
Quem sou Eu
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