sexta-feira, 12 de junho de 2009

Quem sou Eu




Tudo começou com minha estranha dificuldade de cumprimentar pela segunda vez pessoas que eu já havia conhecido. Como não entendia minha atitude, ora pensava que meu egocentrismo fosse orgulho, superioridade; ora, ao contrário: pensava que era vergonha, timidez, solidão mórbida. Cheguei a desconfiar de que seria uma pessoa preconceituosa sem saber, principalmente com as pessoas especiais. De toda forma sempre fui considerado uma pessoa excêntrica, autoritária e egocêntrica. Após anos de trabalho e tentativas sinceras de mudar, esse traço de caráter não só persistiu, como se aguçou em relação a situações específicas. Na verdade, o egocentrismo travestia a dificuldade de troca afetiva e emocional. Eu fingia ser autoritário e excêntrico para esconder de mim mesmo meu transtorno comportamental.


Mas, de uns tempos que resolvi assumir a forma que sou, ao invés de tentar modificar os aspectos nocivos mais marcantes de minha personalidade. E assim fui convivendo com meu isolamento e com minha luta solitária contra as instituições. Então, aos 47 anos de idade, 25 dos quais voltados para auto-conhecimento, descobri que tenho síndrome genética de Asperger, uma forma de autismo de alta funcionalidade, caracterizado, por um lado, pela dificuldade de sociabilidade e de expressão emocional, e por outro, por várias capacidades hiper-desenvolvidas.


Houve, para mim, uma inversão de perspectiva entre minha prepotência (sempre considerei um gênio) e minha impotência (um gênio incompreendido e mal utilizado). Antes eu me achava diferente num sentido de superioridade e acabava sempre me frustrando comigo mesmo e me sentindo inferior. Ao compreender minha diferença como uma deficiência e as capacidades resultantes como compensações secundárias, estou me aceitando melhor e entendendo minha real potência. Ao aceitar e compreender minha deficiência cognitiva, hoje estou me adaptando, ultrapassando definitivamente a contradição que me forjou e redimensionando melhor as qualidades compensatórias, as resiliências que desenvolvi.


Resilie ... o que?


Resiliência é uma noção proveniente da física, referente à propriedade de alguns materiais de, acumular energia quando exigidos ou submetidos a estresse, voltando em seguida ao seu estado original, sem qualquer deformação - como um elástico ou uma vara de salto em altura, que se verga até um certo limite sem se quebrar e depois retorna com força, lançando o atleta para o alto. Resiliência para a física é a capacidade de um material voltar ao seu estado normal depois de ter sofrido pressão.


Há duas transposições diferentes deste conceito físico para outras áreas do conhecimento: a da psicologia (também adotada por diferentes tipos de especialidades médicas e biológicas) e a da administração de empresas (e também da programação neurolinguística). A psicologia define resiliência como a capacidade do indivíduo lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse, risco - sem entrar em surto psicológico. E para administração de empresas, resiliência significa a capacidade de uma empresa ou corporação de se adaptar às mudanças no ambiente social em que estão inseridas, reformulando estratégias e processos de negócio para atender a novas exigências do mercado e da sociedade. A maoria dos estudos psicológicos tem foco no indivíduo, assim como os estudos administrativos tomam organizações como objeto, mas também há estudos sobre resiliência coletiva na psicologia e resiliência individual nos estudos sobre administração.


Em ambos os casos, a resiliência é a capacidade concreta de retornar ao estado natural de excelência, superando uma situação critica, mas de formas diferentes. A resiliência administrativa está mais para tirar vantagem das adversidades, enquanto a resiliência psicológica dá ênfase ao desenvolvimento de capacidades compensatórias de uma deficiência, como o cego que tem a audição ampliada. Tal diferença se dá porque os administradores ressaltam mais o desenvolvimento dos efeitos colaterais compensatórios secundários (a audição ampliada), enquanto os psicólogos enfatizam que o fator determinante é a deficiência primária (a cegueira). No caso de minha síndrome, devido a o subdesenvolvimento emocional em relação aos outros, superdesenvolvi a capacidade mimética de representação.


Vou descrever a resiliência que desenvolvi para compensar minha deficiência, deixando para falar das características mais difíceis da síndrome em um segundo momento. Devido a minha dificuldade de comunicação emocional, tornei-me um excelente jogador de Tarô. Foi a forma que encontrei de me relacionar intimamente com as pessoas. E o tarô, talvez seja preciso explicar, não é simplesmente um jogo de cartas, mas um jogo de identidade simbólica. Também é preciso dizer que o Tarô apenas coroou uma forma peculiar que desenvolvi desde criança de me comunicar diretamente com o inconsciente das pessoas, através da combinação das linguagens de verbal e visual. A dificuldade de me comunicar diretamente de uma forma emocional me propiciou transferir e contra-transferir conteúdos psíquicos com facilidade. De forma intuitiva, minha mente mimetiza a outra mente, compreendendo-a e oferecendo a mente mimetizada uma imagem objetiva de si mesma através do meu olhar. E o tarô e a síndrome permitem-me partilhar da vida íntima das pessoas em um contato ‘frio’ com suas cargas afetivas. Uma indiferença diferente do mero descaso ou da insensibilidade do desprezo: a crueldade ou impiedade.


Bom, falei até aqui da minha resiliência (da audição ampliada), agora vou falar da minha deficiência (da cegueira).


De saída: meu comportamento distante é bastante antipático. A primeira impressão quase nunca é positiva. Isto acrescido a uma postura competitiva – “metido” - geralmente é interpretada como uma afronta, como uma invasão territorial. Quem me compreende e passa dessa primeira impressão negativa, acaba gostando de mim, até que, em determinado momento, eu deliberada ou involuntariamente a machuco com verdades inconvenientes. Ocorrem transferências não-analíticas de conteúdos negativos e eu acabo incitando o que há de pior em cada pessoa – como se a vida fosse um jogo de tarô sem cartas.


Mas, as pessoas machucadas não reconhecem sua própria negatividade e a projetam sobre minha pessoa (e os que reconhecem a sua negatividade se afastam magoadas). Ninguém nunca me agradeceu pela minha contribuição ao seu crescimento. Eu mostrava o que havia de pior nas pessoas e elas me odiavam bastante por isso. Além do que, eu nunca soube como fazer amigos. Sempre dei muitos e muitos presentes para conquistar-lhes a confiança e os abandonando afetivamente. Descobri Ludwig Von Beethoven, Amadeus Mozart e Andy Wharol – entre outros prováveis portadores da síndrome - faziam o mesmo.


Também apresento vários outros sintomas comuns à síndrome. Sempre fui um colecionador compulsivo (álbuns de figurinhas, História em Quadrinhos e Tarôs) com alguns interesses específicos. Tenho um grande gosto pelo silencio e pela solidão. E o desejo de ser invisível já me rendeu até apelidos. Tenho momentos recorrentes de mal-humor e de ansiedade, em que perco o contato visual e fico monossilábico. Alfabetizei-me sozinho; tive dificuldades motoras e fonológicas, que superei tardiamente de formas criativas; apesar de um desempenho intelectual acima da média, sempre apresentei dificuldades de integração e de adaptação escolar.


Sei que me acostumei com a situação de ‘todos contra mim’ (na verdade, era ‘eu contra todos’) e a conviver com uma imagem pública distorcida da minha pessoa. Isto fez de mim uma pessoa forte em vários sentidos. Porém, me levou também a um beco sem saída, a uma vida solitária e incapaz de crescimento com autonomia interdependente. Com o tempo, minhas limitações tornaram-se evidentes para mim e para todos. Como alguém tão desenvolvido no campo das idéias pode ser assim tão estúpido no campo emocional? Como alguém que dedica tanto tempo e energia ao próprio desenvolvimento pode apresentar tantos e tão contraditórios aspectos negativos em sua personalidade? Por que considero todos tão falsos e sinto que todos estão não apenas me enganando (o que seria uma simples paranóia), mas enganando a si mesmos?


Meu jeito frio e distante adicionado minha incontinência verbal (em parte decorrente da falta de contexto analítico de minhas transferências pessoais) foram sempre interpretados (às vezes, por mim mesmo) como se eu fosse maldizente e cruel. E, certamente, quando me encontrava deprimido pelo meu desajuste, via e falava sobre o que havia de mais negativo de uma forma aparentemente cínica. Não quero com isso dizer que minha síndrome justifica minhas fraquezas de caráter, mas, a verdade é que meu transtorno comportamental tem condicionantes cognitivas de fundo genético, impossíveis de serem superados pelo desenvolvimento moral ou espiritual.


Quando “a ficha caiu” foi como se eu encontrasse a solução de um quebra-cabeça, uma imagem construída a partir de vários anos de observação através de diferentes formas de autoconhecimento. É um grande alivio e uma grande humilhação, descobrir que se é uma pessoa especial. Houve, para mim, uma inversão de perspectiva entre minha prepotência e minha impotência. Antes eu me achava diferente num sentido de superioridade e acabava sempre me frustrando comigo mesmo e me sentindo inferior. Ao compreender minha diferença como uma deficiência e as capacidades resultantes como compensações secundárias, estou me aceitando melhor e entendendo minha real potência. Aliás, houve diversos tipos de readaptação em minha auto-imagem. Algumas foram naturais. Passei a me sentir como se tivesse ‘remando contra a maré’ durante toda a vida e que a partir de agora eu ‘vôo a favor dos ventos’. Outras estão sendo difíceis. Distinguir minha ‘vulnerabilidade’ de minha ‘autopiedade’, por exemplo. Antes, eu não me dava o direito de ser vulnerável, pois isto seria uma fraqueza inaceitável. Já havia percebido isto, mas não sabia a verdadeira origem do medo de expor minha fragilidade.


Nasci no Rio de Janeiro, Brasil, em 1961. Sou o quinto filho de uma família de classe média baixa. Meu era bancário e minha mãe, doméstica. Meus irmãos mais velhos tiveram grande importância na minha formação. Francês foi psicanalista; Jurema, socióloga; e Carmi (Maria do Carmo), professora, poeta e escritora. Meu irmão Fred foi empresário e executivo de uma empresa multinacional. De certa forma, eu sou uma re-interpretação dessas pessoas e das situações que elas viveram. Também há minha irmã caçula, Maria Claudia, professora de design e produtora de vídeos de animação. Eu e ela somos ‘temporões’, isto é, nascemos bem depois dos irmãos mais velhos e fomos criados por meus pais já em idade avançada, quando os outros já tinham casado e saído de casa. Aos 12 anos e meio, minha família foi morar em uma cidade pequena, Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, Nordeste do Brasil. Eram tempos sombrios da ditadura militar e mais do que uma alienação da realidade social, a Contracultura foi para minha geração um alento em meio desesperador vazio cultural imposto pela censura.


Em 1978, passei em primeiro lugar para o Curso de Jornalismo, da UFRN, mas motivado pelo clima de redemocratização do país, abandonei o curso e fui morar no Rio de Janeiro. De 1979 a 82, cumpri rigorosamente a iniciação prescrita pelo jornalista ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda: “Todo brasileiro com coração entra no Partido Comunista aos 18 anos; todo brasileiro com cabeça abandona o Partido Comunista aos 21”. Logo após este breve flerte com o marxismo, em que trabalhei em jornais de esquerda e militei no movimento estudantil, e, posteriormente, durante minha descoberta prática da psicanálise e de Freud, suspeitei que o pensamento objetivo que explica a vida social a partir das necessidades econômicas e instintivas nunca chegava à compreensão real das motivações humanas. Até minha graduação como jornalista em 1985, na Faculdade de Comunicação e Turismo Helio Alonso (FACHA), me dediquei basicamente à boemia, à poesia e a escrever roteiros para Histórias em Quadrinhos.


A partir de então me dediquei ao estudo teórico e prático das diversas correntes de pensamento esotérico, lendo criticamente livros de diferentes tendências e freqüentando várias modalidades de terapias alternativas. Em 1986, tive o privilégio de conhecer o padrinho Sebastião Mota e de me fardar, no dia de São João Batista, na Doutrina do Santo Daime. Dentre as muitas mudanças desencadeadas por este fato, ressalto uma reaproximação espiritual de minha família e das práticas mediúnicas kardecistas em que fui educado. Em 1988, no dia 17 de novembro, quando a Umbanda completava exatamente seus 80 anos, cheguei à casa do Caboclo Tupinambá e também me iniciei no culto. Morei na Amazônia de 91 a 95, trabalhando em condições e atividades que variaram desde professor primário no interior da floresta, no município de Pauiní, do Estado do Amazonas, até editor de telejornal em Rio Branco, capital do Acre. E de 95 até 2008 me tornei professor de comunicação social na UFRN, onde também fiz mestrado e doutorado em ciências sociais. Durante esse período escrevi vários artigos e livros, tanto sobre assuntos esotéricos como sobre temas científicos, políticos e culturais.


Como pesquisador na área de comunicação social, trabalho com teoria da complexidade (Edgar Morin, Humberto Maturana, Boris Cyrulnik), cibercultura (Pierre Levy, Derick Kerckhove) e comunicação política (John Thompson, Anthony Giddens). Minha dissertação de mestrado trata do método hermenêutico (teoria da interpretação) no campo das ciências sociais e minha tese de doutorado de sua aplicação às quatro primeiras eleições presidenciais de Luis Inácio Lula da Silva.


Do ponto de vista do pensamento esotérico, tenho uma profunda afinidade e uma antiga preferência pelos autores contemporâneos de caráter anti-platônico (Krisnamurti, Steiner, Gurdjieff, Castaneda, Osho, Ken Wilber, Miguel Ruiz, para citar os principais), que dão ênfase ao autoconhecimento e ao descondicionamento da consciência.



Minha página pessoal é: http://www.ufrnet.br/~marcelobolshaw

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