sexta-feira, 19 de junho de 2009

Oliver Sacks


Um antropólogo em Marte (páginas 253 e 256)

O autismo foi descrito quase que simultaneamente por Leo Kanner e Hans Asperger nos anos 40, mas o primeiro parecia vê-lo como um desastre consumado, enquanto o segundo achava que podia ter certos aspectos positivos e compensatórios - uma "originalidade particular de pensamento e experiência, que pode muito bem levar a conquistas excepcionais na vida adulta".

Fica claro, mesmo nesses primeiros relatos, que existe uma vasta gama de fenômenos e sintomas no autismo - e muitos outros podem ser acrescentados aos que foram listados por Kanner e Asperger. A grande maioria das crianças examinadas por Kanner é retardada, em geral gravemente; uma proporção significativa tem convulsões e pode sofrer de sinais e sintomas neurológicos "suaves" - toda uma gama de movimentos automáticos ou repetitivos, como espasmos, tique, balanços, giros, brincadeiras com os dedos ou batidas com as mãos; problema sde coordenação e equilíbrio; dificuldades peculiares, por vezes ao iniciar um movimento, semelhante ao que se vê no mal de Parkinson. Também pode haver, com muita proeminência, um amplo espectro de reações sensórias anormais (e com freqüência "paradoxais"), com algumas sensações intensificadas ou mesmo intoleráveis, outras (que podem incluir a percepção da dor) diminuídas ou aparentemente ausentes. Pode haver, se a linguagem for desenvolvida, distúrbios lingüísticos complexos e estranhos - uma tendência à verborragia, conversa vazia e um discurso dominado por clichês e fórmulas; a psicóloga Doris Allen descreve esse aspecto do autismo como uma "deficiência semântico-pragmática". Em contraposição, as crianças do tipo examinado por Asperger têm em geral uma inteligência normal (e por vezes muito superiores) e menos problemas neurológicos.

Kanner e Asperger trataram o autismo clinicamente, fazendo descrições com tamanha riqueza e precisão que mesmo hoje, cinqüenta anos depois, é difícil superá-los. Mas foi apenas nos anos 70 que Beate Hermelin e Neil O' Connor e seus colegas em Londres, formados na nova disciplina da psicologia cognitiva, dedicaram-se à estrutura mental do autismo de uma maneira mais sistemática. Seu trabalho (e o de Lorna Wing, em particular) sugere que existe um problema essencial, uma tríade consistente de deficiências, em todos os indivíduos autistas : deterioração da interação social com os outros, da comunicação verbal e não verbal e das atividades lúdicas e imaginativas. O surgimento dessas três juntas, segundo eles, não é fortuito; todas são expressões de um distúrbio único e fundamental de desenvolvimento. Eles sugerem que os autistas não têm nenhum conceito verdadeiro, ou sentimento, em relação às outras mentes, ou às suas próprias; eles não têm, no jargão da psicologia cognitiva, qualquer "teoria da mente". No entanto, esta é apenas uma hipótese entre várias; nenhuma teoria, até agora, abarca a totalidade do conjunto de fenômenos vistos no autismo. Kanner e Asperger continuavam, nos anos 70, a refletir sobre as síndromes que tinham delineado mais de trinta anos antes, e todos os profissionais de ponta de hoje passaram vinte anos estudando-as. O autismo como tema toca nas mais profundas questões de ontologia, pois envolve um desvio radical no desenvolvimento do cérebro e da mente. Nossa compreensão está avançando, mas de uma maneira provocadoramente vagarosa. O entendimento final do autismo pode exigir tanto avanços técnicos como conceituais para além de tudo com o que hoje podemos sonhar.
O quadro do "autismo infantil clássico" é terrível. A maioria das pessoas (e, de fato, dos médicos) se questionada sobre o autismo, faz uma imagem de uma criança profundamente incapacitada, com movimentos estereotipados, talvez batendo com a cabeça, com uma linguagem rudimentar, quase inacessível: uma criatura a quem o futuro não reserva muita coisa.

É verdade que, curiosamente, a maioria das pessoas fala apenas de crianças autistas e nunca de adultos, como se de alguma forma as crianças simplesmente sumissem da face do planeta.

Mas embora possa haver de fato um quadro devastador aos três anos de idade, alguns jovens autistas, ao contrário das expectativas, podem conseguir desenvolver uma linguagem satisfatória, alcançar um mínimo de habilidades sociais e mesmo conquistas altamente intelectuais; podem se tornar seres humanos autônomos, aptos para uma vida pelo menos aparentemente completa e normal - mesmo se encobrindo uma singularidade autista persistente e até profunda.

Asperger tinha uma idéia mais clara que Kanner sobre essa possibilidade; daí nos referirmos hoje a esses indivíduos autistas com "altos desempenhos" como portadores da síndrome de Asperger. A diferença definitiva talvez seja que as pessoas com a síndrome de Asperger podem nos falar de suas experiências, de seus sentimentos e estados interiores, ao passo que aquelas com autismo clássico não são capazes disso. Com o autismo clássico, não há janelas, e podemos fazer apenas inferências. Com a síndrome de Asperger, há uma consciência de si e aos menos algum poder de introspecção e relato.

Se a síndrome de Asperger é radicalmente diferente do autismo infantil clássico (numa criança de três anos, todas as formas de autismo podem parecer as mesmas), ou se há uma continuidade entre os casos mais graves de autismo infantil (acompanhados, talvez, por retardo mental e vários problemas neurológicos) e os indivíduos mais dotados e com altos desempenhos, ainda é motivo de discussão. (Isabelle Rapin, uma neurologista especializada em autismo, frisa que as duas condições podem ser diferentes a nível biológico mesmo se por vezes se assemelham a nível comportamental). Também não está claro se essa continuidade deveria ser estendida para incluir a posse de "traços autistas" isolados - preocupações e fixações intensas e peculiares, em geral associadas a uma relativa distância e recuo social -, como se percebe em uma quantidade de pessoas convencionalmente chamadas de "normais" ou vistas, no máximo, como um pouco estranhas, excêntricas, pedantes ou reclusas.

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