segunda-feira, 15 de junho de 2009

Espelhos Quebrados


REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL ANO 5 – Nº 55 DEZEMBRO DE 2006. http://www.sciam.com.br/

ESPELHOS QUEBRADOS - UMA TEORIA SOBRE O AUTISMO

Estudos sobre o sistema de neurônios-espelho podem revelar as causas da doença e ajudar pesquisadores a desenvolver novos métodos de diagnóstico e tratamento PorVilayanurS. Ramachandran e Lindsay M. Oberman


A primeira vista, nada chama atenção no menino que você acaba de conhecer. Mas no momento em que começa a falar com ele, logo percebe algo errado. Ele não olha nos seus olhos, evita-os; balança o corpo para frente e para trás; bate a cabeça contra a parede. Não consegue manter uma conversação nem remotamente próxima ao que chamaríamos normal. E apesar de sentir medo, raiva e prazer, ele é incapaz de demonstrar empatia e de apreender os sinais não-verbais da comunicação, como faz sem dificuldade a maior parte das crianças.


Neuronios-espelho parecem desempenhar as mesmas funções que nos autistas estariam desintegradas.


Na década de 40, dois médicos, o psiquiatra americano Leo Kanner e o pediatra austríaco Hans Asperger, descobriram o distúrbio de desenvolvimento que afeta milhares de crianças no mundo. Foi uma descoberta isolada - nenhum dos dois sabia o que o outro pesquisava, e, por uma dessas coincidências inacreditáveis, ambos deram o mesmo nome à síndrome: autismo. A palavra vem do grego autos, que significa "de si mesmo". O nome é perfeito. O traço mais flagrante da doença é o isolamento do mundo exterior, com a consequente perda da interação social. Atualmente, os médicos adotam o termo "transtornos do espectro do autismo", deixando claro que a patologia varia amplamente em seu grau de seriedade, mantendo em comum certos sintomas característicos.

Desde que o autismo foi identificado, cientistas concentram esforços para estabelecer suas causas. Eles sabem que a propensão à doença é hereditária, embora fatores ambientais exerçam importante papel. A partir do final da década de 90, pesquisadores de nosso laboratório da Universidade da Califórnia em San Diego passaram a se empenhar em determinar uma possível conexão entre autismo e uma classe de células nervosas recentemente descoberta, os neuronios-espelho. Porque parece existir uma associação entre essas células e aptidões como emparia e percepção das intenções alheias, era lógico formular a hipótese de disfunção do sistema de neurônios-espelho na origem de certos sintomas autísticos. Vários estudos deram respaldo a essa tese ao longo da década passada. No¬vas pesquisas sobre os neuronios-espelho deverão explicar como surge o autismo, e, paralelamente, médicos serão capazes de desenvolver métodos mais eficazes para diagnosticar a doença e tratá-la.

Explicando Os Sintomas

EMBORA os PRINCIPAIS sinais do autismo sejam isolamento social, ausência de contato visual, pobreza de expressão verbal e inexistência de empatia, outros, menos conhecidos, nem por isso são difíceis de notar. Geralmente os autistas não compreendem metáforas, e muitas vezes as interpretam literalmente. Têm dificuldade de imitar gestos alheios. Demonstram preocupação exagerada com coisas insignificantes e não tomam conhecimento de aspectos fundamentais de seu entorno, especialmente o social. Manifestam extrema aversão a determinados sons que, por nenhuma razão aparente, têm o poder de lhes produzir alarmes sonoros no cérebro.

As teorias propostas para explicar o autismo podem ser divididas em dois grupos: o anatómico e o psicológico (aos quais se juntou um terceiro, logo rejeitado: o grupo da "mãe-geladeira", segundo o qual a frieza emocional materna é a causa da doença). Eric Courchesne, da Universidade da Califórnia em San Diego, e outros anatomistas mostraram que crianças autistas apresentam anomalias típicas no cerebelo, a estrutura cerebral responsável pela coordenação dos movimentos musculares voluntários. Embora essa explicação faça sentido, seria insensatez concluir que danos no cerebelo causam a patologia. Lesão cerebelar resultante de golpe na cabeça costuma produzir na criança tremores, contorções e movimentos oculares anormais - sintomas raramente associados ao autismo. Mais: nunca se registrou nenhum dos sinais típicos do distúrbio autístico em portadores de doença cerebelar. É possível que as mudanças ocorridas no cerebelo de crianças autistas sejam efeitos colaterais de genes anormais, não relacionados ao autismo. A verdadeira causa da doença estaria em outros efeitos dessa anormalidade.

Talvez a hipótese psicológica mais engenhosa seja a teoria da mente, de Uta Frith, da University College de Londres, e de Simon Baron-Cohen, da Universidade de Cambridge. Segundo essa tese, a principal anormalidade do autismo é a incapacidade de construir uma "teoria da mente alheia". Existe no cérebro um circuito neuronal especializado que permite ao indivíduo pensar sobre si próprio e sobre o outro, e assim criar formulações sofisticadas sobre sua mente e sobre a mente de outrem, e ainda prever o comportamento de seus semelhantes. Essa compreensão dá respaldo à nossa capacidade de cooperar e aprender com o próximo. Em suma, ela possibilita a interação social. Ora, muitos indivíduos autistas não compreendem que as pessoas têm seus próprios pensamentos, pontos de vista e um modo único de ser. Consequentemente, tampouco entendem crenças, emoções e atitudes dos outros. Essa "teoria da mente alheia" inexiste ou se apresenta seriamente deficiente em autistas e explica em grande parte sua dificuldade na comunicação social.

Sem dúvida, Frith e Baron-Cohen estão no caminho certo. Porém, sua teoria não desvenda toda uma constelação de sintomas aparentemente não associados ao autismo. Dizer que autistas são incapazes de interagir socialmente porque têm "carência de teoria da mente" não faz mais que chamar a atenção para os sintomas da doença. O que os pesquisadores precisam identificar são os mecanismos cerebrais cujas funções conhecidas se associam àquelas que, nos portadores da patologia, estão desintegradas.

O trabalho de Giacomo Rizzolatti e seus colegas da Universidade de Parma, Itália, vai nessa direção. Na década de 90 eles observaram o funcionamento neuronal de macacos resos enquanto esses animais desempenhavam (atividades induzidas) (ver "Espelhos na mente", na pág. 44). Já se vão algumas décadas desde que a ciência descobriu que certos neurônios do córtex pré-motor, região localizada no lobo frontal, são responsáveis pelo controle de movimentos voluntários. Há o neurônio que dispara quando o macaco pega um amendoim, por exemplo, ou no momento em que aciona uma alavanca e assim por diante. É comum chamar essas células nervosas de neurônios de comando motor. (É importante ter em mente que o neurônio cuja atividade é mapeada não controla sozinho os movimentos do braço; esse neurônio faz parte de um circuito neuronal cujos sinais emitidos permitem monitoração.)

Resumo/ Neurônios-espelho e Autismo

Porque os neuronios-espelho estão aparentemente implicados na interação social, disfunções desse sistema neural específico estariam na origem de alguns dos principais sintomas do autismo, como isolamento social e ausência de empatia.

Estudos sobre a doença atestam falta de atividade dos neuronios-espelho em diversas regiões do cérebro de autistas. Pesquisadores especulam se tratamentos com a finalidade de restaurar essa atividade poderiam minorar alguns sintomas. Uma hipótese complementar, a teoria do mapa topográfico emocional (salience landscape theory] elucidaria sintomas secundários como hipersensibilidade.

O que surpreendeu o grupo de Ri-zzolatti foi que também um subgrupo de neurônios de comando motor disparava quando o animal via outro desempenhar a mesma ação, fosse ele macaco, fosse ele pesquisador. O neurônio incumbido de controlar o ato de pegar o amendoim entrava em ação quando o animal observava seu colega fazer esse movimento. Técnicas de imageamento cerebral revelaram posteriormente que os chamados neurônios-espelho existem nas mesmas regiões do córtex cerebral dos humanos. Essas observações levam a crer que os neurônios-espelho - mais exatamente as redes neurais de que fazem parte - não apenas emitem comandos motores como habilitam primatas e humanos a determinar as intenções de outros indivíduos através da simulação mental das ações destes. Nos macacos, o papel dos neurônios-espelho parece limitar-se a fazê-los prever simples ações direcionadas; mas nos humanos, tudo leva a crer que dizem respeito à capacidade de interpretar intenções mais complexas. Estudos posteriores mostraram que os neurônios-espelho localizam-se em diferentes regiões do cérebro humano, como o córtex cingular e o córtex insular, e desempenham importante papel nas demonstrações de empatia. Ao analisar o córtex cingular anterior de pessoas acordadas, pesquisadores descobriram que certos neurônios que normalmente disparam em resposta à dor emitiam os mesmos impulsos diante da dor de outrem. Os neurônios-espelho possivelmente têm a ver com a imitação, capacidade que se manifesta de forma rudimentar em grandes macacos antropóides, e é bastante acentuada em humanos. A aptidão para imitar é inata, ao menos parcialmente. Andrew Meltzoff, da Universidade de Washington, constatou que quando se mostra a língua a um recém-nascido, ele faz o mesmo. Como o bebé não vê a própria língua, é incapaz de usar feedback visual ou correção de erro para aprender a habilidade. Deve haver um mecanismo no cérebro da criança que lhe permite mapear a imagem da mãe - seja sua língua estirada, seja seu sorriso - nos neurônios do comando motor.

O desenvolvimento da linguagem na infância requer integração de áreas cerebrais. Para que a criança imite as palavras do pai ou da mãe, seu cérebro tem de transformar sinais auditivos nos centros responsáveis pela audição localizados nos lobos temporais em conteúdos verbais fornecidos pelo córtex motor. Se os neurônios-espelho estão diretamente envolvidos nesse mecanismo não se sabe, mas algum processo análogo deve existir. Por último, tudo indica que essa classe de células nervosas habilita o ser humano a enxergar a si mesmo como seu semelhante o enxerga, e esse dom é essencial na autopercepção e na introspecção.

Supressão de Ondas Mu

QUE isso TEM a ver com o autismo? No final da década de 90, nosso grupo notou que os neurônios-espelho pareciam desempenhar exatamente as mesmas funções que, nos autistas, estariam desintegradas. Se esse circuito neuronal estiver de fato associado à interpretação de intenções complexas, sua ruptura explicaria a impressionante falta de habilidade social que caracteriza pessoas que sofrem do distúrbio. Da mesma forma, outros traços fundamentais da doença - falta de empatia, déficit de linguagem, mimetismo precário - podem ser detectados em casos de disfunção desse sistema. Andrew Whit-ten, da Universidade de Saint Andrews, Escócia, e sua equipe chegaram às mesmas conclusões que nosso grupo, e quase na mesma época, mas a primeira evidência experimental partiu de nosso laboratório, graças à colaboração entre Eric L. Altschu-ler e Jamie A. Pineda, ambos da Universidade da Califórnia em San Diego.

Para demonstrarmos a disfunção dos neurônios-espelho em crianças autistas, seria preciso encontrar um meio de monitorar a atividade dessas células sem lançar mão de eletrodos - procedimento adotado por Rizzolatti e colegas por ocasião de suas pesquisas com macacos. Optamos por medir as ondas cerebrais dos pequenos com eletroencefalograma (EEG). Há mais de 50 anos sabe-se que uma família de ondas cerebrais detectadas por esse exame, as ondas mu, são bloqueadas toda vez que o indivíduo faz movimentos musculares intencionais, como abrir e fechar as mãos. O interessante é que tal bloqueio ocorre também quando o indivíduo observa outra pessoa executar o mesmo movimento. Concluímos então que a supressão das ondas mu poderia nos servir de método simples e não-invasivo para monitorar a atividade dos neurônios-espelho.

Decidimos concentrar nosso primeiro experimento em crianças autistas sem graves danos cognitivos aptas a operar cotidiana e socialmente em nível quase normal - autistas HFA, do inglês high-functioning autism. (Excluímos do estudo crianças muito pequenas seriamente afetadas pela doença porque queríamos ter certeza de que as eventuais diferenças encontradas não eram sintomas de distúrbios de atenção, de dificuldade de entender instruções ou de retardo mental.) O EEG detectou a supressão das ondas mu quando a criança fazia um gesto voluntário, tal como se nota em crianças sadias. Mas quando ela observava outra pessoa desempenhar a ação, não ocorria a supressão. Concluímos que o sistema de comando motor da criança estava intacto, mas seu sistema de neurônios-espelho, deficiente. Essa conclusão, por nós apresentada na reunião anual da Sociedade de Neuro-ciências, em 2000, constituiu prova cabal do acerto de nossa hipótese.

Desnecessário dizer que não se deve generalizar com base num único caso. Algum tempo depois, nossa equipe realizou mais uma série de experimentos com um grupo de dez crianças portadoras de distúrbio do espectro autista HFA e um grupo controle de dez crianças sadias, do mesmo sexo e faixa etária. Comprova¬mos a supressão das ondas mu quando os indivíduos do grupo de controle moviam as mãos ou assistiam a um vídeo de uma mão que se movia. Porém, o EEG das crianças com autismo acusou supressão das ondas apenas quando elas movimentavam as próprias mãos.

Outros pesquisadores confirmaram nossos resultados por meio de diferentes técnicas de monitoramento da atividade neural. Por meio da magnetoencefalografia, que mede campos magnéticos produzidos por correntes elétricas no cérebro, uma equipe chefiada por Riitta Hari, da Universidade de Tecnologia de Helsinque, Finlândia, descobriu deficiência de neurônios-espelho em crianças autistas. A ressonância magnética funcional serviu para o grupo liderado por Mirella Dapretto, da Universidade da California em Los Angeles, registrar redução da atividade dos neurônios-espelho no córtex pré-frontal de autistas. E a estimulação magnética transcraniana, técnica que induz correntes elétricas no córtex motor a produzir movimentos musculares, foi a opção adotada por Hugo Théoret, da Universidade de Montreal, e seus colaboradores para estudar a atividade dos neurônios-espelho em portadores da doença. Nos integrantes dos grupos de controle, movimentos de mão induzidos eram mais acentuados quando eles assistiam ao vídeo desses movimentos; e menos intensos nos indivíduos autistas.

Os resultados desses estudos são a confirmação incontestável da tese de que as pessoas com autismo sofrem de disfunção do sistema de neurônios-espelho. Embora ainda não saibam quais fatores genéticos ou ambientais de risco impedem o desenvolvimento desses neurônios ou alteram seu funcionamento, pesquisadores empenham-se com rigor em confirmar a hipótese, pois ela explica sintomas que são exclusivos do autismo. Não só estes: a deficiência dessa classe de células nervosas responde por outros, menos conhecidos. Sabe-se há tempos que crianças autistas costumam ter dificuldade de interpretar provérbios e metáforas. Uma vez pedimos a um dos nossos meninos que "baixasse a bola". Ele levou a instrução ao pé da letra: pegou uma bola e colocou-a no chão. Presente apenas em algumas crianças que sofrem do distúrbio, essa dificuldade permanece inexplicada.

Entender metáforas exige a capacidade de extrair um denominador comum de realidades aparentemente desconexas. Tomemos como exemplo o efeito bouba-kiki, descoberto há mais de 60 anos por Wolfgang Kohler, um dos fundadores da escola gestalt. No teste desenvolvido pelo psicólogo teuto-americano, dois desenhos são apresentados, um curvilíneo, lembrando um borrão de tinta, o outro pontudo, como uma lasca de vidro. À pergunta qual é bouba, qual é kiki, 98% das pessoas apontarão o objeto arredondado como bouba e o pontudo como kiki, qualquer que seja seu idioma nativo. Isso significa que o cérebro é capaz de estabelecer propriedades abstraías de formas e sons. A boca assume abruptamente formato angular enquanto a língua faz rápida flexão no palato para produzirem a entrecortada e áspera sonoridade kiki; já a suave ondulação da figura amebia-na mimetiza metaforicamente o círculo que os lábios descrevem para produzir o som bouba. Note-se que, no alfabeto romano, a forma angular está presente no desenho da letra k e da letra i, e a arredondada, no traço do b, do o e do a. Nossa conjectura: essas inter-relações por analogia devem ser similares ao mecanismo mental da criação da metáfora, e delas certamente participam circuitos neurais aparentados com o sistema dos neurônios-espelho. Crianças com autismo submetidas ao teste invariavelmente atribuem nome errado às figuras.

Que parte do nosso órgão do pensamento atua nessa habilidade? O giro angular, localizado bem no cruzamento dos centros responsáveis pela audição, visão e tato, parecia ser o melhor candidato, não só por sua posição estratégica como por terem nele sido identificadas células nervosas dotadas das mesmas propriedades dos neurônios-espelho. Quando estudamos indivíduos não-autistas com lesão nessa área, descobrimos que a maioria falhava no teste bouba-kiki e tinha dificuldade de entender metáforas. Esses resultados apontam que a faculdade de fazer analogias pode ter surgido para ajudar os primatas na execução de tarefas motoras complexas como agarrar galhos de árvore (que exige assimilação imediata e simultânea de informações visuais, auditivas e táteis) e evoluído como aptidão de criar metáforas. O céu é o limite: os neurônios-espelhos permitem ao homem alcançar as estrelas, não só o topo das árvores.

Esses resultados são a confirmação incontestável de que autistas têm disfunção do sistema de neurônios-espelho.

Espelhos Quebrados Podem Ser

OUTRA POSSIBILIDADE fascinante de tratar ou aliviar os sintomas: o biofeedback. O médico monitoraria as ondas mu da criança e as exibiria para ela num monitor. Se as funções de seus neurônios-espelho estiverem adormecidas em vez de ausentes, ela poderia recobrá-las aprendendo - através de tentativa e erro e de feedback visual - a suprimir as ondas mu na própria tela. Nosso colega Jamie Pineda segue essa linha. Os primeiros resultados foram promissores. Esse tipo de técnica, porém, terá de complementar, jamais substituir as tradicionais terapias cognitivo-comportamentais.

Nova abordagem terapêutica talvez possa corrigir desequilíbrios químicos que incapacitam os neurônios-espelho em autistas. Nosso grupo indicou que neurotrans-missores especializados podem aumentar a atividade de neurônios-espelho envolvidos nas respostas emocionais. Segundo essa hipótese, a carência parcial de substâncias explicaria a ausência de manifestações de emparia em quem sofre do distúrbio. Portanto, os pesquisadores devem procurar identificar compostos que estimulem a liberação dos neurotransmissores ou reproduzam seus efeitos nos neurônios-espelho. Um candidato que merece análise é o MDMA, mais conhecido como ecstasy, que parece intensificar o contato emocional e a comunicação. Talvez seja possível identificar o composto para desenvolver um tratamento eficaz e seguro capaz de aliviar ao menos alguns sintomas do autismo.

O alívio trazido por esses tratamentos seria apenas parcial. A hipótese dos neurônios-espelho não consegue explicar outros sintomas do autismo como movimentos repetitivos, contorções, ausência de contato visual, hipersensibilidade, aversão a determinados sons. Ao tentar estabelecer de que maneira esses sintomas secundários se manifestariam, nosso grupo (com a colaboração de William Hirstein, da Faculdade Elmhurst, estado de Illinois, e Portia Iversen, da fundação sem fins lucrativos Cure o Autismo Agora, com sede em Los Angeles) desenvolveu a salience landscape theory, que aqui chamaremos de "teoria do mapa topográfico emocional".

Quando olhamos o mundo ao redor, recebemos uma carga descomunal de informações sensoriais - visuais, sonoras, olfativas e outras. Depois de processadas nas regiões sensoriais do cérebro, elas são transmitidas para a amígdala, que atua como portal do sistema límbico, a unida¬de responsável pelas emoções. Usando o conhecimento armazenado, a amígdala determina como devemos reagir emocionalmente - com medo (ante um ladrão), sensualidade (diante da pessoa amada) ou indiferença (perante uma insignificância). As mensagens fluem em cascata por todo o sistema límbico, atingindo o sistema nervoso autónomo, que prepara o corpo para a ação. Diante de um ladrão, o coração dispara e o corpo transpira para dissipar o calor causado pelo esforço muscular. A estimulação do sistema nervoso autónomo, por sua vez, envia sinais ao cérebro, ampliando a resposta emocional. Com o tempo, a amígdala cria uma espécie de banco de dados, um mapa topográfico detalhado dos significados emocionais do ambiente de cada um de nós.

Nosso grupo decidiu explorar a possibilidade de crianças autistas terem esse mapa distorcido, em razão de conexões deformadas entre as áreas corticais que processam dados sensoriais e a amígdala ou entre as estruturas límbicas e os lobos frontais que regulam o comportamento resultante. Em decorrência dessas conexões anormais, qualquer objeto ou episódio trivial desencadearia na mente uma resposta emocional extremada - uma tempestade autonômica. A hipótese explicaria por que crianças autistas tendem a evitar contato visual ou qualquer outra sensação nova capaz de deflagrar um turbilhão de senti¬mentos intensos. A percepção distorcida de emoções significativas esclarece a razão de elas atribuírem importância exagerada a banalidades como horários de trem e não expressarem interesse algum por coisas que as demais crianças julgam fascinantes.

Obtivemos fundamentação para nossa hipótese quando monitoramos respostas autonômicas de um grupo de 37 crianças com transtorno autístico. Com sensores de biofeedback mensuramos seu nível de condutibilidade da pele causado pela sudo-rese. Comparadas às crianças do grupo de controle, as autistas apresentaram índices gerais mais elevados de estimulação autonômica. Embora ficassem agitadas quando confrontadas com objetos e episódios triviais, na maioria das vezes não davam a menor importância aos estímulos que, no grupo de controle, provocavam exata-mente as respostas esperadas.

Como é possível o mapa topográfico emocional tornar-se tão distorcido? Pesquisas dão conta de que quase um terço das crianças autistas teve epilepsia do lobo temporal na primeira infância, mas a proporção deve ser bem maior, pois muitos ataques epiléticos passam despercebidos. Causadas por saraivadas aleatórias de impulsos nervosos que atravessam o sistema límbico, as convulsões embaralham as conexões entre o córtex visual e a amígdala, indiscriminadamente fortalecendo umas e enfraquecendo outras. Em adultos, a epilepsia do lobo temporal causa distúrbios emocionais variados que não afetam radicalmente a cognição. Nas crianças de até 3 anos, ao contrário, resultam em grave deficiência. E, da mesma forma que o autismo, o risco da doença no lobo temporal na primeira infância parece ser de ordem genética e ambiental. Alguns genes tornariam a criança suscetível a infecções virais, e estas a predisporiam a crises epiléticas.
Nossas descobertas sobre as respostas autonômicas talvez ajudem a entender por que os médicos dizem que febre alta costuma aliviar temporariamente os sintomas do autismo. O sistema nervoso autónomo controla a temperatura do corpo; como é a mesma malha neural que regula temperatura do corpo e explosões emocionais autísticas, possivelmente a febre diminua os efeitos dessas explosões.

A teoria do mapa topográfico emocional poderia igualmente elucidar os movi mentos corporais repetitivos e as pancadas na cabeça auto-infligidas por crianças autistas. Esse comportamento, denominado auto-estimulação, talvez consiga amortecer as chamadas tempestades autonômicas. Descobrimos que a auto-estimulação tinha, além do efeito calmante, o poder de comprovadamente reduzir a condutância da pele. Essa constatação aponta a probabilidade de terapia sintomatológica para tratar a doença a contento. Atualmente Hirstein desenvolve um dispositivo portátil para monitorar a condutância da pele de crianças autistas. Quando o aparelho de¬tecta superexcitação autonômica, ele liga automaticamente outro dispositivo: um colete de suave compressão, que envolve a criança e lhe dá a sensação de que alguém a abraça de modo gentil e caloroso.

Nossas duas teorias candidatas a explicar os sintomas do autismo - disfunção dos neurônios-espelho e distorção do mapa topográfico emocional - não são necessariamente opostas. É possível que a mesma ocorrência que distorce o mapa topográfico - conexões embaralhadas entre o sistema límbico e as demais regiões cerebrais - danifique também os neurônios-espelho. Ou então, as conexões límbicas alteradas seriam um efeito colateral dos mesmos genes que desencadeiam as disfunções do sistema de neurônios-espelho. Muitos experimentos serão necessários para testar com rigor essas hipóteses. A verdadeira causa do autismo permanece um mistério. Enquanto ele não é desvendado, nossas especulações talvez ofereçam uma base útil para futuras pesquisas.

Se as funções dos neurônios-espelho estiverem adormecidas em vez de ausentes, será possível à criança recobrá-las.

PARA CONHECER MAIS

Abrieftourof humanconsciousness.VilayanurS. Ramachandran. Pi Press, 1995.

Autonomic responses of autistic children to people and objects. William Mirstein, Portia Iverson e Vilaya-nur Ramachandran, em Proceedings o/the Royal Soc/ety ofLondon B, vol. 268, págs. 1883-1888,2001.

EEG evidence for mirrar neuron dysfunction in autism spectrum disorders. Lindsay M. Qberman, Edward M. Hubbard, Joseph P. McCIeery, Eric L. Altschuler, Jaime A. Pineda e Vilayanur S. Ramachandran, em Cogn/f/ve Brain Research, vol. 24, págs. 190-198,2005.

Reflexos reveladores. David Dobbs, em Meme&Cérebro, edição 161, junho de 2006.

2 comentários:

  1. Excelente Artigo. Muito elucidativo, mas pouco conclusivo. Seria necessário mais exemplos de cunho prático. Deveria se falar mais acerca da quantidade de neurônios, das interações neurais, etc...

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  2. E o que se dizer sobre as conexões neurais, das quantidades de ligações dos neuronios dos autistas, etc...

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