OLIVER SACKS
AUTISMO99 - CONFERÊNCIA NA INTERNET
MICHELLE APPLEBY: Bem vindo à Conferência na Internet, Dr Sacks. O senhor não somente é muito conhecido por seus trabalhos no campo da Neurologia, mas também é conhecido do público por seus livros, dois dos quais tornaram-se filmes. “À Primeira Vista” e “Tempo de Despertar” (At First Sight and Awakenings). Para aqueles que talvez ainda não o conheçam, o senhor poderia se apresentar e contar um pouco de sua trajetória?
OLIVER SACKS: Bem, eu sou Oliver Sacks e nasci em Londres em 1933. Vim para os EUA em 1960 e aqui estou desde então. Acredito que fui levado para a Neurologia desde muito cedo em parte porque era a especialização de meus pais e também por ter encontrado aqueles pacientes que descrevi em “Tempo de Despertar”. Acho que sempre me interessei por condições extremas que desafiam a resistência e a humanidade das pessoas, obrigando-as, num certo sentido, a criar uma vida e uma identidade em bases incomuns. Este é certamente um dos motivos que me levou a encontrar pessoas com síndrome de Tourette e com Autismo, entre outras.
M. A. Sim, grande parte de seu trabalho tem sido descortinar o mistério. O quanto já caminhamos na compreensão das múltiplas e complexas interações que formam o cérebro humano?
OLIVER SACKS: Esta é uma pergunta importante. O cérebro e a mente humanos são inimaginavelmente complexos e até recentemente pouco se compreendia dos fenômenos além do nível dos reflexos. Agora estamos vendo coisas como a percepção visual – existem cerca de 40 ou 50 diferentes sistemas envolvidos na análise das cores, orientação, profundidade, movimento e todos os demais parâmetros da percepção visual.A imagem na retina é apenas o início de tudo. O que é tão difícil de entender é como estes 40 ou 50 sistemas diferentes são orquestrados em conjunto para nos proporcionar a nossa visão do mundo. Nós vemos o mundo colorido, em movimento, interessante, nossa atenção vai para todos os lados, e nós na verdade ignoramos a natureza da consciência, da atenção e de todos os processos cerebrais que possam estar envolvidos. Mas certamente muitos, muitos sistemas estão sincronizados em todo cérebro.
M. A. O autismo ainda é um distúrbio intrigante, com teorias variando desde diferenças na estrutura e no desenvolvimento do cérebro até teorias auto-imunes. Como o senhor vê os diferentes vieses das pesquisas? Será que descobrirão uma única causa ou o senhor acredita que o autismo se manifesta de várias formas e tem sub-grupos?
OLIVER SACKS : Bem, para começar, antes de 1960 o autismo não era visto como uma condição orgânica. E certamente Bettleheim e outros acreditaram que seja causado pelos pais, particularmente por um tipo de mãe fria, mãe geladeira. Penso que isto gerou um inconfortável sentimento de culpa em toda uma geração de pais. Foi apenas em 1960 que isto começou a mudar. Em parte, devido à epidemia alemã de sarampo nesta época, quando se descobriu que as crianças cujas mães haviam contraído a doença no primeiro semestre, poderiam desenvolver várias formas de lesões cerebrais, poderiam ser cegos, surdos, ou retardados ou autistas, ou tudo isso. E isto foi muito sugestivo de uma origem biológica para o autismo. Obviamente, quaisquer que sejam os determinantes biológicos, eles interagem com os determinantes humanos. A resposta da mãe ao seu filho, em parte estará baseada na maneira como a criança reage. A interação tem início no primeiro dia de vida. E talvez a interação com uma criança autista seja ruim ou peculiar desde o primeiro dia. Isto cerramento foi sugerido, ainda que o autismo seja geralmente identificado no segundo ano de vida. E há um crescente número de suspeitas neste sentido, de que alguma coisa acontece no primeiro ano de vida.
Desde o princípio, exatamente na mesma época, diferentes formas de manifestação do autismo foram descritas por Kanner e Asperger. Kanner descrevendo uma forma de autismo infantil em que aqueles afetados nunca atingiam uma linguagem muito boa e talvez permanecessem aprisionados em estereotipias... Interessante que tanto Kanner quanto Asperger, em países diferentes, fizeram descrições em alguns aspectos muito similares, ambos convergindo para a palavra autismo para descrever o isolamento. O termo autismo havia sido utilizado anteriormente em relação à esquizofrenia, como uma manifestação dela. Kanner não sugeriu que o autismo infantil seria uma esquizofrenia, mas havia o isolamento. E ambos sentiram que o isolamento não era causado por medo, defesa ou ausência, mas por alguma incapacidade de entender o sentimento do outro, de expressar o seu sentimento e de se posicionar num mundo de sentimentos.
Os pacientes descritos por Kanner nunca desenvolveram uma linguagem adequada e permaneceram deficientes. Na descrição de Asperger, linguagem e inteligência estavam presentes, mas num tipo de vida bem diferente. Mas ainda não se sabe se a forma de Kanner ou a de Asperger são condições separadas ou fazem parte de um contínuo. Eu tenho a impressão que o que chamamos de autismo é muito heterogêneo, tanto em sua origem como em sua evolução.
M. A: Parece haver uma crescente incidência de autismo em muitos países, especialmente nos últimos 10 anos. Qual a sua opinião sobre isto?
OLIVER SACKS: Eu não sei se é uma boa comparação, mas eu tomaria o suposto aumento da síndrome de Tourette como paralelo. Em 1970 ou final da década de 60, por exemplo, a síndrome de Tourette era considerada muito rara, com a prevalência de talvez uma em um milhão de pessoas. Depois de ver um paciente com Tourette, encontrei outro nas ruas de Nova York, e três no dia seguinte, e dois no outro. Fiquei imaginando se não seria eu que não enxergava estas pessoas. E pensei que se eu havia visto cinco pessoas em dois dias, deveria ser mais comum do que se pensava. Atualmente sabemos que a síndrome de Tourette é mil vezes mais comum e a prevalência é de uma em mil e não em um milhão de pessoas. A síndrome não se tornou mais comum, nós simplesmente nos tornamos mais conscientes dela. Eu suspeitaria de que algo assim esteja ocorrendo com o autismo. Talvez não fosse reconhecido e comentado. Há vinte e cinco anos, quando eu trabalhava num hospital público em Nova York, as pessoas com autismo não eram claramente diferenciadas das pessoas com retardo mental, esquizofrenia ou outras condições. Acho que a nossa percepção do que seja o autismo está mais clara.
M. A: O senhor recentemente trabalhou com muitos indivíduos autistas. Por que o senhor acredita que diferentes terapias, por exemplo, arte terapia ou musicoterapia produzem efeitos tão diferentes nas pessoas com autismo?
OLIVER SACKS: Primeiramente, as pessoas com autismo, apesar do autismo ou além dele, são tão diferentes como qualquer pessoa. A música talvez afete algumas pessoas mais do que outras. Algumas pessoas com autismo são privilegiadas visualmente, outras não. Algum tem habilidade matemática. Eu penso que precisamos encontrar a área que seja estimulante para eles. Acho que a terapia certa pode se tornar a ocupação certa para a pessoa com autismo, assim como para qualquer um de nós, dependendo no interesse e na habilidade individual. Por exemplo, eu estou numa fase bem botânica, estou usando uma camiseta do Kew Gardens que empregou dois ou três jovens autistas que possuem talento e amor por desenho botânico. Então para eles o desenho botânico era terapêutico, vocacional, prazeroso e tudo mais. Mas uma habilidade nem sempre corresponde a um sentimento. Eu sei que você entrevistou Temple Gradin e talvez ela mesma já tenha dito isso, mas Temple é muito musical, tem boa memória musical, um entendimento muito, muito bom da forma musical, acha a música intrigante, mas eu não sei se a música suscita sentimentos nela. Ela esteve aqui um Natal e disse que iria a um concerto. Um concerto de Bach com duas ou três partes. Ela questionava se Bach poderia ter composto um concerto em quatro ou cinco partes. Esta era uma questão interessante e eu perguntei “Você gostou do concerto?” e ela respondeu que considerava Bach muito engenhoso, mas não estava certa se tinha gostado. Por isto eu não estou certo se a música seria terapêutica para Temple. Talvez a música lhe seja um desafio, mas não fonte de prazer, enquanto estar com animais e em contato com sua maneira de sentir e pensar é vital para ela. E se torna tanto sua terapia quanto sua profissão.
M. A : O senhor acredita que existam vantagens para as pessoas com autismo e síndrome de Asperger em estarem afastados de suas emoções ?
OLIVER SACKS: Eu penso que algumas habilidades que podem existir nas síndromes autísticas podem se tornar vantagens. As pessoas autistas podem ter uma grande capacidade de concentração, o que podemos ver desde o início da infância. Elas tendem a desenvolver paixões intensas, às vezes chamadas obsessões, mas eu não acho que devamos usar uma palavra associada a uma patologia, como esta. Quer a paixão diga respeito à astronomia, quer Sherlock Holmes, que talvez fosse autista, tenha identificado cinzas de 145 tipos diferentes de charutos, esta habilidade de focalizar intensamente a atenção pode ser um ponto forte. Acho que algumas vezes, a relativa ausência de envolvimento emocional pode ser uma vantagem. Temple sente que pode ser uma boa examinadora de trabalhos científicos, já que não está sujeita a interesses pessoais, preconceitos ou parcialidades. Posso tentar responder sua pergunta tomando por referência um grande cientista, chamado Cavendish, que viveu no século XVIII. Cavendish pesou a Terra, descobriu a composição da água, foi o primeiro a fazer do hidrogênio uma figura importante. Mas ele era um homem incomum. Eu trouxe comigo uma biografia dele, daquela época (mais ou menos 1850). Eu vou ler um pedaço para você porque eu acho que soa como um exemplo de um gênio autista:
“ Ele não amava, ele não odiava, ele não tinha esperança, ele não tinha medo, ele não adorava como os outros fazem. Ele era quase sem paixão, tudo o que ia além do puro intelecto e que requeria exercícios da imaginação, afeto ou fé era desagradável para Cavendish. Um intelectual, pensante. Um par de olhos maravilhosamente agudos, observadores, e um par de mãos habilidosas, experimentando ou registrando é tudo o que eu percebo quando leio seu memorial. Seu cérebro parece não ter sido mais do que uma máquina calculadora, seus olhos fontes de visão e não fontes de lágrimas. Suas mãos, instrumentos de manipulação que nunca tremiam de emoção. Seu coração, apenas um órgão anatômico necessário para a circulação do sangue. Há mais nele para se admirar do que para acusar. (...) Ele foi um dos benfeitores da sua raça. Ele pacientemente ensinou e serviu a humanidade enquanto ela tremia com sua frieza e suas peculiaridades. Ele não foi um poeta, padre ou profeta. Apenas uma inteligência clara e fria emitindo luz branca que clareava tudo o que tocava, mas nada aquecia. Uma estrela de pelo menos segunda, se não de primeira grandeza, no firmamento intelectual.”
M. A : O senhor escreveu dois livros que incluem casos de pacientes autistas. “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” e “Um antropólogo em Marte”. Nestes livros o senhor descreve o mundo deles em tantos detalhes que permite que o leitor o perceba melhor. O senhor acredita que as pessoas que são neurologicamente típicas deveriam estar mais conscientes das necessidades das pessoas com autismo e mudar suas atitudes em benefício deles?
OLIVER SACKS: Primeiramente, eu não estou bem certo do significado da palavra normal ou típico e acredito que existam muitas maneiras de ser , que podem ser completas e plenas ainda mesmo quando se é diferente. Este assunto é constantemente levantado pelas pessoas surdas, que gostam de distinguir surda com um “s” minúsculo, significando deficiente auditiva e não com um “S” maiúsculo, significando a pessoa surda que pertence a um grupo étnico, um grupo lingüístico e cultural, com suas próprias perspectiva, sensibilidade, comunidade, cultura, linguagem. Então as pessoas surdas, especialmente aquelas que sinalizam e são parte da comunidade dos surdos, não se percebem deficientes mas, diferentes. E também percebem que são plenos. Então eu acredito que as pessoas autistas, principalmente as talentosas, sentem da mesma maneira. A própria Temple já disse que “se eu pudesse estalar os dedos e deixar de ser autista, não o faria, porque ser autista é parte do que eu sou”. Agora, em relação a Cavendish, de quem eu falei, os seus contemporâneos precisaram adaptar-se a ele. Ele não suportava, por exemplo, ser olhado diretamente; não suportava que falassem com ele diretamente, se alguém lhe perguntava algo, ele se encolhia. Todos sabiam muito bem que era preciso manter uma conversa animada com uma outra pessoa e, se o assunto interessasse a Cavendish, ele espontaneamente participaria. Ele não suportava a sociedade, podia tolerar a interação com uma única pessoa. Precisamos ser sensíveis a todos, adaptarmo-nos a todos. Todas as relações humanas dizem respeito a uma mútua adaptação e não sei até que ponto isto é consciente. Acho que a empatia nos ensina a adaptar. Considero a adaptação muito importante Com as pessoas autistas, estamos, em certo sentido, lidando com uma outra espécie de ser humano. Eles podem ser muito inteligentes e muito sensíveis a seu modo, mas ainda assim de uma maneira diferente. Eu acho que nós precisamos nos adaptar em alguns aspectos, assim como eles. Diderot disse, há muito tempo atrás, no século 18, que o problema do cego não é a cegueira , mas não enxergar as pessoas. Em outras palavras, eles precisam se adaptar ao mundo vidente. Para as pessoas que são cegas para cores, o problema é aprender um vocabulário de cores que não significa nada para eles. Eles viveriam muito bem sem isto. Num certo sentido, as pessoas autistas precisam aprender um vocabulário do que é ser como nós. E acho que nós também precisamos aprender o vocabulário deles, e a melhor maneira de compreender as pessoas surdas é ter um vizinho surdo, um amigo surdo, um parente surdo. Assim sendo, a melhor maneira de aprender sobre o autismo é manter algum tipo de relacionamento com uma pessoa autista. Eu diria que acredito ter alguns colegas autistas, mas se eles pensam que eu sou um dos seus colegas autistas, ou não, eu não sei. Sim, estamos sempre nos adaptando. Felizmente.
M. A: Bem, Dr. Sacks, muito obrigada.
OLIVER SACKS: Eu que agradeço.
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