Madhusree Mukerjee Scientific American junho/2004 Tradutor: Roberto Bech, para a Comunidade Virtual Autismo no Brasil
Autistas de baixo desempenho não costumam brincar, escrever ou expressar de maneira criativa uma rica vida interior. Mas eis que surge Tito Mukhopadhyay.
Sete da manhã, um apartamento comum em Hollywood, Califórnia. Tito Mukhopadhyay toma leite e cereal, curvado sobre a tigela do café da manhã. Seu olhar passeia pelo aposento e sua mão treme. Quando ele acaba o café, sua mãe, Soma Mukhopadhyay, ergue-o da cadeira e o leva até o chuveiro, entrando de tempos em tempos quando ele pede ajuda, gritando. Enfim Tito surge, vestido, e curva-se diante da pequena Soma para que ela penteie seus cabelos negros e cheios.
De repente ele sai pela porta e acelera pelos corredores até ganhar céu-aberto. Ele sacode as mãos, absorto, enquanto a luz dourada do sol brilha em seu rosto.
Mais tarde eu pergunto a ele: "Você gostaria de ser normal?"
Com letras mal-traçadas, mas compreensíveis, ele escreve: "Por que eu deveria ser Dick e não Tito?".
Aos 15, Tito dá todos os sinais do clássico autismo de "baixo desempenho". Anos atrás na Índia, um médico disse aos pais que o garoto não era capaz de entender o que se passava ao seu redor.
"'Eu entendo muito bem', disse o espírito no garoto", ele relatou em The Mind Tree (A Árvore da Mente), livro que escreveu entre os oito e os doze anos (Tito costuma referir-se a si mesmo na terceira pessoa). Ele escreveu sobre suas duas diferentes personalidades: uma "pensante, cheia de aprendizados e sentimentos" e uma "agente, estranha e cheia de ações" que ocorrem de maneira involuntária. A inteligência autista varia muito, indo de acentuado retardamento à síndrome de savant. Tito une uma extrema incapacidade neurológica com a capacidade de escrever e por isso pode contar ao mundo sobre sua bizarra condição íntima.
Tito já se pôs diante de um espelho, tentando falar, implorando a sua boca que se mexesse.
"Tudo que sua imagem fazia era olhar de volta", ele escreveu. Pais de autistas costumam confundir a indiferença deles com teimosia; os escritos de Tito desmentem. Ele tem dificuldade em controlar seus movimentos, e fala por grunhidos quase incompreensíveis, que sua mãe quase sempre precisa traduzir.
Ele "se via como uma mão ou uma perna e girava para que todas as suas partes se juntassem", explica Tito sobre outra atividade típica, a rotação. Girar as mãos o ajuda a ter mais consciência das sensações de seu corpo. Fortes impulsos sensoriais conflitantes parecem perturbar os autistas, que reagem desligando um ou outro sentido, como nota o neurologista Yorram S. Bonneh do Weizmann Institute of Science de Rehovot, Israel. Tito, por exemplo, não consegue ver e ouvir alguém ao mesmo tempo, e por isso evita olhar nos olhos - uma característica comum aos autistas.
Em 2001, Bonneh e sua equipe descobriram que se Tito visse um flash de luz vermelha ao mesmo tempo em que alguém dizia "azul", ele respondia "eu vi azul" ou "estou confuso". Ele tem uma hierarquia de sentidos: a audição anula a visão, e ambas extinguem o tato. Por vezes seus dedos não sentiam nada. Efeitos surpreendentes como esses permaneceram ocultos até agora, já que autistas de baixo-funcionamento não costumam cooperar com pesquisadores. Todas essas interferências levaram a um "mundo fragmentado percebido através de sentidos isolados", escreveu Tito.
Ele compreende o mundo pela leitura ou quando sua mãe lê para ele - física, biologia, poesia. "É graças ao meu conhecimento dos livros que pude dizer que o ambiente era feito de árvores e ar, vivos e não-vivos, isso e aquilo", ele escreveu.
Nascido na Índia, Tito aprendeu a se comunicar graças aos incansáveis esforços de sua mãe. Vivendo só com seu filho em cidades indianas que se orgulham de seus especialistas em autismo (o pai de Tito trabalhava em uma cidade distante), Soma Mukhopadhyay, química e educadora, tentou de tudo para que sua estranha criança reagisse. Quando um especialista disse que Tito era retardado, ela chorou lágrimas amargas e foi a outro médico.
Seu primeiro sucesso com Tito veio quando ele olhava para um calendário; ela apontou os números, dizendo-os em voz alta. Em uma semana, antes de completar quatro anos, Tito aprendeu a somar e subtrair números e a compor palavras apontando números e letras em um quadro. Os especialistas acharam que era um truque; então ela o ensinou a escrever. Ela amarrou um lápis à mão dele e o ajudou a traçar o alfabeto até que ele o fizesse sozinho. Ainda assim, ela o observa com profunda intensidade e estala os dedos quando os pensamentos de Tito se perdem - o que acontece a toda hora durante minha visita. Ele parece ser acometido de eventuais sobrecargas neurais. Se ela não interferisse, explica Soma, ele escreveria palavras de outra sentença no meio daquela que já havia começado.
"Vai ser muito, muito difícil reproduzir o método, prediz Richard Mills da National Autistic Society de Londres, que encontrou Tito em Bangalore e o introduziu ao mundo ocidental. Soma agora trabalha com diversas crianças em Los Angeles, usando seu "método da sugestão rápida", com um sucesso espetacular. Ela se comunica usando o canal sensorial que estiver aberto na criança, e ele ou ela responde apontando letras ou figuras. Muitas vezes ela toca a mão ou o ombro delas (de acordo com Tito, o toque faz a criança sentir aquela parte do corpo e controlá-la), e as interrompe quando os pensamentos delas se perdem. Infelizmente, aponta Mills, todo dia surge um novo tratamento para autistas que acaba desaparecendo, e o método de Soma ainda não foi validado pela ciência.
Mesmo que possam se comunicar, poucos autistas devem revelar personalidades tão complexas como a de Tito. Um dia, ele escreveu, as coisas se tornaram transparentes: "Primeiro um quarto transparente, depois um teto transparente... e um reflexo transparente de mim mesmo mostrando apenas as cores do arco-íris do meu coração."
Por muito tempo os especialistas acreditaram que autistas não tinham imaginação e introspecção. Lorna Wing, também da National Autistic Society, explica que essas qualidades estão presentes mas enfraquecidas - autistas não costumam se interessar por outras pessoas. A hierarquia dos sentidos - audição acima da visão e esta acima do tato - leva a um "mundo fragmentado percebido através de órgãos de sentidos isolados". Uma teoria popular defendida por Uta Frith do Medical Research Council de Londres, afirma que os autistas não tem uma "teoria da mente" intuitiva -ou seja, não "sacam" as intenções das pessoas. Não percebendo sutilezas e ironias, eles são austeros e sem humor.
Temple Grandin, da Universidade de Illinois, por exemplo, é uma autista de alto desempenho cuja fenomenal capacidade de visualizar e compreender os sentimentos das vacas levaram-na a criar matadouros mais humanos. Em seu fascinante livro Thinking in Pictures (Pensando em Figuras, sem tradução no Brasil), Grandin afirma que pode compreender e até mesmo enganar os outros. Entretanto, essa compreensão vem com um constante esforço intelectual: ela estuda pessoas como primatologistas estudam chimpanzés.
Em seu livro, Grandin soa um pouco mecânica - já Tito, pelo contrário, parece uma criança estranhamente criativa e perceptiva, com a qual coisas muito estranhas acontecem. A teoria da mente não se aplica a Tito, afirma Michael Merzenich da Universidade da California, em San Francisco. Wing rebate que os que usam a linguagem com facilidade, como Tito, se saem bem em testes da teoria da mente. Mas mesmo Tito, ela diz, tem problemas em aplicar sua teoria da mente para se comportar de maneira apropriada em situações sociais complexas.
À tarde, indo de carro para a praia, a conversa chega a Darwin. "Você devia dizer que os autistas são os humanos mais evoluídos", opina Tito. "É uma mutação recente". Eu protesto, surpreso com a afirmação. "Só estou brincando. Não posso brincar?" ele responde abruptamente - fui eu que não entendi. Depois ele diz que eu deveria pôr em minha reportagem a "parte da brincadeira, porque tem a ver com a teoria da mente". A praia está fria, venta e está escuro, mas Tito segue andando. Depois de o mandar parar, sua mãe levanta a bainha das calças dele. Ele gosta "da água, do som e do ar" da praia, ela explicaria depois. "Eu sempre gosto do ar". Fitando o negro e vasto oceano, Tito permanece com os pés cobertos pela areia e pela espuma das ondas, sacudindo as mãos.
Madhusree Mukerjee, ex-redator (da Scientific American), é o autor de The Land of the Naked People: Encounters with Stone-Age Islanders (A Terra das Pessoas Nuas: Encontros com os habitantes da Ilha da Idade da Pedra - Houghton Mifflin, 2003).
http://www.sciam.com/article.cfm?SID=mail&articleID=00051F89-6E42-10A9-A47783414B7F0000&chanID=sa006
Traduzido/transcrito por Argemiro Garcia em 18.6.04
Olá Marcelo! Obrigada pela visita!
ResponderExcluirGostei muito do seu blog e vou recomendá-lo para os leitores do blog Deficiente Ciente, ok?
abraços
Vera