Autismo como um paradigma acadêmico
TYLER COWEN
Tradução: Argemiro de Paula Garcia Filho
Se você pensar em termos de História, talvez imagine que as faculdades e universidades americanas nunca tenham contribuído para o discurso racista. Mas Princeton e muitas outras instituições mantiveram de fora os judeus, e defesas “acadêmicas” da escravidão, segregação e eugenia foram comuns até que mudanças sociais mais amplas tornaram tais pontos de vista inaceitáveis.
A triste verdade é que ideologias desumanizantes permanecem conosco na universidade moderna, embora com formas muito diferentes. Os principais exemplos incluem as inaceitáveis maneiras com que às vezes se fala e pensa sobre o espectro autista.
Há alguns anos, Michael L. Ganz, que ensina na Escola de Saúde Pública de Harvard, publicou um ensaio intitulado “Costs of Autism in the United States” (Custos do autismo nos Estados Unidos). Em nenhuma parte o ensaio avalia se as pessoas autistas trouxeram algum benefício à raça humana. Você pensaria em um ensaio equivalente, intitulado: “Custos dos nativos americanos”? Ganz pode pensar que o autismo é estritamente uma doença, mas nunca menciona ou refuta o fato de que um grande número de autistas rejeita essa visão e a considera ofensiva.
David Bainbridge é um anatomista veterinário da Universidade de Cambridge. Em 2008, publicou um livro pela Editora da Universidade de Harvard, “Beyond the Zonules of Zinn: A Fantastic Journey Through Your Brain” (Além das zônulas de Zinn: uma fantástica jornada através de seu cérebro). No livro, defende que aos autistas falta a qualidade da precaução humana, e comparou suas faculdades cognitivas desfavoravelmente às de macacos com lesões no cérebro. Deborah R. Barnbaum, filósofa da Universidade do Estado de Kent, escreveu um livro ironicamente intitulado “The Ethics of Autism”, Indiana University Press, 2008 (As éticas do autismo) em que pondera as implicações filosóficas do suposto fato de os autistas não poderem compreender a vida mental de outras pessoas, ainda que este resultado não se sustente experimentalmente e possa ser igualmente refutado por uma simples conversa com uma pessoa autista.
A questão não é focalizar a culpa nesses indivíduos em particular, porque estão afogados em idéias, atitudes e pressupostos comuns a uma estrutura maior. É perfeitamente possível que todos esses escritores sejam “gente boa” no sentido usual do termo, mas eles não sentem nenhum mal-estar ou hesitação em pintar tais retratos de outros seres humanos. A triste verdade é que, até que nós estejamos muito conscientes das implicações de nossas palavras, é muito fácil escorregar em maus hábitos e numa retórica danosa, mesmo no politicamente correto ano de 2009.
Citei alguns exemplos mais óbvios, mas as polarizações subjacentes estão enraizadas muito mais profundamente. Muitas pessoas nas faculdades estão cientes de como lidar com o autismo (e a síndrome de Asperger - vou me referir em geral ao espectro autista) em seus “programas de necessidades especiais”. A realidade mais complexa é que há muito mais autismo no ensino superior do que a maioria de nós imagina. Não são apenas os “estudantes com necessidades especiais”, mas, também, os oradores das turmas, os professores da faculdade e até, às vezes, seus gestores.
Esta última frase não é algum tipo de humor barato sobre as muitas características disfuncionais do ensino superior. O autismo é descrito frequentemente como uma doença ou uma praga, mas quando chega à faculdade ou universidade americanas é, frequentemente, uma vantagem competitiva mais do que um problema a ser resolvido. Uma razão da universidade americana ser tão forte é porque mobiliza eficazmente forças e talentos de pessoas do espectro autista. Apesar de alguma retórica negativa, a realidade é que os autistas são muito bons para as faculdades e as faculdades são muito boas para os autistas.
O economista e Prêmio Nobel Vernon L. Smith, um antigo colega meu, é um exemplo dos mais conhecidos de um grande realizador do espectro autista. Vernon, em "Discovery: A Memoir" (Descoberta: uma biografia), atribui seu extremo foco, sua atenção ao detalhe e sua erudita persistência a ligação que tem com o espectro autista. Richard Borcherds, vencedor em 1998 da Medalha Fields de Matemática, foi diagnosticado como tendo síndrome de Asperger. Temple Grandin, que ensina Ciência Animal na Universidade do Estado de Colorado, é uma brilhante mulher autista cujas idéias revolucionaram a forma como os matadouros americanos tratam os animais. Há provavelmente muito mais exemplos, embora não reconhecidos. O consagrado pesquisador de autismo Simon Baron-Cohen, da Universidade de Cambridge, argumenta que os grandes realizadores autistas são, de longe, mais comuns do que a maioria das pessoas imagina, sobretudo na Matemática e na Engenharia. Ele ressalta o comportamento sistemático como uma importante habilidade cognitiva dos autistas.
Apesar da retórica comum, a cada ano os especialistas estão nos ensinando mais sobre as capacidades cognitivas do espectro autista. Nos anos 60, a visão comum era que, à exceção de alguns savants, a maioria das pessoas autistas eram incapacitadas intelectualmente (“retardado mental” era o termo mais do que infeliz), e em certa medida esse estereótipo persiste hoje. Mas um crescente número de pesquisadores localiza as áreas onde os autistas superam os não-autistas.
Um breve levantamento mostra que os autistas têm, em média, maior percepção do compasso e outras habilidades musicais; são melhores na observação de detalhes no meio de padrões; têm melhor acuidade visual; enganam-se menos com ilusões de ópticas; têm maior probabilidade de ajustar-se a alguns cânones da racionalidade econômica, resolvem alguns tipos de quebra-cabeças e enigmas a uma taxa muito mais rápida e são menos propensos a ter certos tipos de falsas memórias. Autistas igualmente têm, em graus variados, fortes ou mesmo extremadas habilidades de memorização, execução de operações com códigos e cifras, fazer cálculos de cabeça, mostrando excelência em muitas outras tarefas cognitivas especializadas. Os savants, ainda que sejam excluídos, igualmente apresentam as forças cognitivas encontradas nos autistas mais genericamente. Uma pesquisa recente mostrou, usando métodos conservadores, que cerca de um terço dos autistas podem apresentar habilidades excepcionais ou do tipo “savant”.
As pessoas autistas têm geralmente desejo e talento superiores para montar e organizar a informação. Especialmente quando lhes é dado acesso apropriado a oportunidades e materiais, vivem o ideal do auto-didatismo, frequentemente ao extremo. Em meu novo livro, Create Your Own Economy (Crie sua própria economia), me refiro aos autistas como os “infóvoros” da moderna sociedade e argumento que, em muitas dimensões, nós, como sociedade, estamos trabalhando duro para imitar suas habilidades na organização e processamento da informação. Autismo é um item sobre o qual todo interessado em Educação deveria ler e pensar.
Resulta que a universidade americana é um ambiente especialmente favorável aos autistas. Muitos são desfavorecidos ou ficam oprimidos com o processamento de certos estímulos do mundo exterior e ficam, assim, sujeitos a uma sobrecarga sensorial. Para alguns autistas, isso é debilitante, mas para muitos outros é um problema administrável ou, ao menos, contornável. O resultado é que muitos preferem ambientes estáveis, a possibilidade de escolher seu próprio horário de trabalho ou fazê-lo em casa, e poder trabalhar focalizando-se em um projeto por longos períodos de tempo.
Soa familiar? A faculdade e a universidade modernas são, frequentemente, ideais ou ao menos relativamente boas em fornecer esse tipo de ambiente. Enquanto há uma grande discriminação contra os autistas, a maioria das pessoas das universidades americanas são tão cegas à noção de sua alta realização que um preconceito cancela o outro, para benefício de muitos dos autistas nas universidades.
Da mesma forma, autistas tendem a ser extremamente bons em um conjunto de tarefas cognitivas e marcadamente fracos ou prejudicados em outras; são os beneficiários finais da noção de Adam Smith da divisão de trabalho. A especialização acadêmica facilita que tais pessoas tenham sucesso.
Não quero forçá-lo na direção de estereótipos como o “professor distraído”. Algumas pessoas que se encaixam nesse perfil bem podem estar dentro do espectro autista, mas ele igualmente inclui mulheres bonitas com sorrisos encantadores, gente entusiasmada e extrovertida, pessoas que não conseguem produzir um discurso significativo e aqueles que fazem sozinhos, de memória, discursos em público claros e eficientes. Tony Attwood, um psicólogo australiano com extensa experiência em diagnóstico, acredita que a profissão de ator tem muitos representantes do espectro autista. A questão não é convencer ninguém de nenhum perfil único para autistas, ou substituir velhos estereótipos por novos. Ao contrário, devemos nos manter abertos para aprender que a diversidade autista é maior do que costumamos pensar.
Não há nenhuma dúvida que muitas pessoas autistas têm problemas na vida e são incapazes de atingir posições elevadas ou mesmo disputá-las. Problemas, tais como atipicidades sociais muito óbvias, ansiedade social, ou várias hipersensibilidades sensoriais - encontrados entre muitos, mas de forma alguma em todos os autistas - podem impedi-los de conseguir trabalhos comuns ou melhorar seu status social.
Os preconceitos atuais são baseados pelo menos em dois erros. Primeiramente, o autismo é definido muito frequentemente como uma série de prejuízos ou falhas da vida, levando grandes realizadores à exclusão. É mais científico e igualmente mais ético ter uma definição mais ampla do autismo, baseada nos métodos diferenciados e atípicos para processar a informação e em outros marcadores cognitiva e biologicamente definidos. Dessa maneira, não rotulamos os autistas como necessariamente falhos, mas, em vez disso, reconhecemos uma grande diversidade de resultados, que inclui seus sucessos.
Em segundo lugar, os autistas diagnosticados são frequentemente aquelas pessoas que encontram os maiores problemas na vida. A maioria de autistas de sucesso nunca aparece para diagnóstico ou intervenção e muitos deles não têm necessidade ou mesmo consciência dele, ou, mesmo se estão tendo dificuldades, temem o estigma de um diagnóstico. A amostragem comum de autistas, como se encontra em um típico artigo de pesquisa, mostra muito mais problemas e menos sucessos do que seria mais provável caso usasse uma amostra verdadeira da população de autistas. Ou seja, há uma polarização enorme da seleção. A pesquisa sobre o autismo está somente começando a confrontar esse problema.
Também estamos aprendendo que muitos estereótipos sobre autistas são falsos ou pelo menos equivocados. Costuma-se dizer, por exemplo, que autistas não se preocupam com outras pessoas, ou que não sentem emoções genuínas ou empatia. O mais provável é que autistas e não-autistas não se compreendam muito bem. Frequentemente, as pessoas que fazem tais afirmações mostram sua própria falha em mostrar empatia para com autistas ou para reconhecer a riqueza de suas vidas emocionais. Mesmo quando há reconhecimento das suas capacidades cognitivas - mais comumente nos savants – ele vem acompanhado de um clichê impreciso, um retrato de uma personalidade fria, robótica, menos que humana.
A relevância do espectro autista para o ensino superior não diz respeito apenas a indivíduos particulares. A própria natureza do ensino superior mostra o quanto nós, frequentemente sem o saber, acreditamos que os perfis cognitivos dos autistas são um ideal educacional. Na “educação especial” abundam os esforços para ensinar as habilidades dos não-autistas aos autistas, mas, na sala de aula regular, frequentemente fazemos o oposto. Vejo a educação superior (e níveis mais baixos) ensinando as pessoas a serem autistas em muitas de suas habilidades cognitivas básicas. Além disso, algumas características cognitivas chave no autismo são a habilidade e o desejo de processar muita informação através de escalas grandemente diferentes, de minúsculos detalhes a estruturas abrangentes; focalizar e ordenar mentalmente essa informação; um relativamente alto nível de objetividade científica; e a presença de algumas capacidades cognitivas altamente especializadas, mesmo se acompanhados de algumas áreas com baixo desempenho. Um educador pode gostar de muita coisa nessa lista.
Outra maneira de ver a questão é notar que todos os alunos têm necessidades especiais, precisando de muita ajuda. Estudantes não-autistas não representam algum ponto ideal que todos estão se esforçando para alcançar, mas tanto os autistas como os não-autistas estão tentando aprender as habilidades especiais do outro grupo, assim como aperfeiçoar suas próprias habilidades.
No discurso público e acadêmico, não é apenas o entendimento do autismo que está em jogo. O neurodesenvolvimento dos seres humanos segue caminhos variados, sendo o TDAH (transtorno do deficit de atenção com hiperatividade) outro exemplo de destaque. Precisamos ser cuidadosos sobre o que rotulamos como uma desordem. Em relação a este, por exemplo, crescem as evidências de que os indivíduos com TDAH conseguem resultados muito bons por padrões sociais normais. O estereótipo da cultura popular de um TDAH (frequentemente "TDA") é de uma pessoa que zapeia freneticamente de um canal ou website para o outro. Uma visão alternativa é que muitos desses indivíduos se adaptam e terminam por usar seu perfil cognitivo para se lançar do aprendizado de um fragmento de informação ao seguinte, terminando por aprender melhor e, talvez, situando-se melhor para lidar também com o mundo social. Similarmente, um estudo descobriu que as pessoas disléxicas se fizeram melhores empreendedores na média, porque são acostumados à idéia de ter que delegar algumas tarefas mais do que tentar gerenciar tudo.
Em muitas áreas da neurodiversidade humana, incluindo o autismo, ainda não sabemos as respostas a muitas perguntas básicas. Não há nem mesmo um acordo nas definições básicas do autismo, ásperguer e conceitos relacionados. Entretanto, aplicamos aos autistas montes de estereótipos e descrições negativas que não sonharíamos em usar para descrever grupos raciais ou étnicos. É tempo de as faculdades e universidades saíram à lutar contra esses preconceitos. O ensino superior precisa ajustar sua retórica à realidade de que é uma opção comum para pessoas autistas.
Ainda estamos procurando as metáforas e a linguagem apropriadas para descrever e explicar a neurodiversidade humana. Por exemplo, avançamos de uma visão do autismo como resultado de "mães-geladeira" - frias, distantes - como foi mais visivelmente sugerido por Bruno Bettelheim nos anos 1960. Estamos apenas dando os primeiros passos além de uma definição do tipo “série de limitações”. Chamarmos o autismo de “desordem” é sermos humanos e oferecermos simpatia, ajuda, ou é valorizar estereótipos e baixas expectativas, ignorando a variação nos resultados?
Mas se não está correto falar em desordem, quais seriam os termos aceitáveis e qual seria o quadro conceitual a acompanhá-los? A distinção geralmente aceita entre o “alto funcionamento” e o “baixo funcionamento” ignora as grandes variações nas habilidades individuais dos autistas e igualmente parece classificar um grupo de seres humanos como algo inadequado. Quando vamos falar do espectro autista, devemos ser humanos, respeitarmos a diferença e a individualidade humanas, a necessidade de apoio e reconhecermos a diversidade dentro do espectro, tudo isso sem supor que as formas dos não-autistas verem o mundo são sempre as corretas.
O senso comum é que “autismo” diz respeito a crianças doentes e cumpre à comunidade acadêmica ajudar a corrigir esse quadro. Se olharmos os dados, parece fácil encontrar montes de crianças com autismo relativamente severo, ao menos segundo os padrões desse mesmo ponto de vista e, assim, encontrar um número proporcional de adultos autistas. Por exemplo, uma idéia disseminada sugere que os Estados Unidos tenham aproximadamente 500.000 crianças autistas, para uma predominância de uma em cada 150. Isso significaria que os Estados Unidos igualmente teriam 1,5 milhão de adultos autistas. (Esses números são aproximações grosseiras e ainda estão em debate.)
Minha opinião é que os Estados Unidos têm de fato mais de um milhão de adultos autistas. Mas se há tantos, as perguntas óbvias são: “Onde estão? Quem são eles? Estão todos trancados nas instituições?” Fala-se em uma recente “epidemia” de autismo. Mas as medidas epidemiológicas da prevalência do autismo - se considerar mudanças baseadas nos critérios diagnósticos, conscientização, disponibilidade de serviços, métodos de pesquisa e assim por diante - não indicam grandes aumentos injustificados. Pode-se argumentar que há um aumento gradual na taxa de autismo, uma vez que as evidências não permitem excluir todas as mudanças (penso ser mais provável que a taxa seja constante ao longo do tempo), mas, ainda assim, a curva seria tão ascendente que, outra vez, uma estimativa apreciável seria mais de um milhão de adultos autistas nos Estados Unidos.
Seria complicado falar ou escrever sobre os autistas que podem estar trabalhando perto de você. Se trabalhar em uma faculdade ou universidade, há uma boa chance de estar interagindo com pessoas no espectro autista regularmente. Talvez sua reação seja elaborar uma lista mental de colegas e começar a aplicar-lhes vários estereótipos. Talvez você fique de vigia, na próxima reunião com o reitor, para ver se encontra pessoas com “traços” autistas, e passe a fofocar sobre essas observações com seus amigos.
Essa é a natureza humana, mas sugiro uma alternativa. Seja diferente. Questione seus estereótipos. Olhe-se no espelho. Quando tiver feito isso, é provável que se considere mais distante da perfeição e mais dentro de variedades pouco convencionais do que esperava.
Autism as academic paradigm
http://chronicle.com/weekly/v55/i41/41cowenautism.htm
Tyler Cowen é professor de Economia na Universidade George Mason, e escreve no New York Times, Money, no blog http://www.marginalrevolution.com/ e em outras publicações. Este texto foi adaptado de seu novo livro, Create Your Own Economy: The Path to Prosperity in a Disordered World.
http://chronicle.com/weekly/v55/i41/41cowenautism.htm
Tyler Cowen é professor de Economia na Universidade George Mason, e escreve no New York Times, Money, no blog http://www.marginalrevolution.com/ e em outras publicações. Este texto foi adaptado de seu novo livro, Create Your Own Economy: The Path to Prosperity in a Disordered World.
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