segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Um gênio provinciano chamado Glenn Gould



Milhões e milhões de pessoas tentam fazer alguma coisa e acabam conseguindo. Pode ser tocar, cantar, dançar, escrever, pintar. Pode ser jogar futebol, vôlei, basquete, pingue-pongue. Pode ser nadar, correr, saltar, levantar peso. Pode ser tornar-se físico, matemático, químico, biólogo, professor, médico, engenheiro. Pode ser qualquer coisa. Milhões de pessoas conseguem. Mas só uma parcela ínfima alcança seu objetivo em nível tão elevado que passa a merecer o título de gênio.

Sorte, acaso, inteligência, talento, dom, vontade, disciplina, concentração, habilidade, paixão? O que transforma uma pessoa e concede a ela essa centelha especial, quase mágica, que a coloca muito acima de maioria, e bastante acima também de seus pares, daqueles que partilham o que buscaram, tentaram e - a certa altura - conseguiram?

Os pedantes têm certa má vontade com a palavra gênio, que qualificam como romântica. Mas é certo que existem gênios em matemática, física, música, xadrez, linguística, ou seja, naquelas especialidades que exigem altíssima inteligência aliada a profunda capacidade de abstração e, digamos assim, incansável curiosidade em relação a tudo que esteja ligado ao objetivo que se persegue.

O GAROTO E O PIANO


Glenn Gould foi um desses raros. Nascido numa família de classe média em Toronto, Canadá, nunca foi um menino igual aos outros. Talvez sofresse de uma forma branda de autismo, a síndrome de Asperger, caracterizada basicamente pelo desinteresse nas relações sociais, que o fazia preferir tocar piano a conviver com os colegas de escola. Que frequentou pouco. E na qual nunca se saiu bem.


Sua mãe, Florence, disse certa vez, quando jovem, que se casaria e teria um filho chamado Glenn, musicalmente bem dotado. Assim, quando engravidou, tocava para ele ouvir lá dentro, no útero, e cercou sua vinda ao mundo de toda a música que conseguiu. Talvez a paixão materna explique a maneira "fetal" de Gould ao piano: sentado numa cadeira extremamente baixa, com os joelhos próximos do teclado, inclinava-se sobre ele, quase o tocando com a testa. E cantava enquanto tocava, às vezes tão alto que era ouvido da plateia, chegando a incomodar algumas pessoas.

Diz a lenda que, ainda bebê e no colo da avó, apertava uma tecla do piano e esperava que o som se esvaísse completamente antes de apertar outra. O que não é comum nas crianças, que preferem extrair o máximo de som que podem, de modo geral apertando várias teclas ao mesmo tempo.

Desde pequeno foi acostumado com a ideia de seu talento superior, e gostava disso. Tanto gostava que foi preciso trancar o piano, para que não estudasse mais de quatro horas por dia, temendo seus pais que se tornasse excêntrico, ou adoecesse. Por outro lado, o pai se dispôs a gastar US$ 3.000 anuais em sua educação musical, soma considerável para a época (por volta de 1940), quantia suficiente para manter razoavelmente bem uma família de sete pessoas. Havia, assim, certa ambiguidade em sua educação, e o espelho era Mozart, sacrificado ao "menino-prodígio".

O COELHO SAI DA CARTOLA


Aos 5 anos, Gould ouviu o primeiro concerto público. Aos 9, decidiu que se tornaria pianista profissional. Aos 10, foi entregue aos cuidados do professor Alberto Guerrero, do conservatório de Toronto, seu único professor além da mãe. Nascido no Chile, Guerrero falava seis idiomas, tocava vários instrumentos e esnobava os colegas, preferindo receber os alunos fora do conservatório. Mas não esnobava apenas os colegas. Também os alunos eram escolhidos criteriosamente e foi, de certa forma, uma reverência ao gênio a aceitação do pequeno enrustido.

Que podia tal professor fazer por esse aluno tão especial? Quando já famoso, Glenn Gould costumava dizer que aprendera tudo sozinho. De sua parte, Guerrero assumia que "o segredo para ensinar Glenn era deixá-lo descobrir as coisas por si mesmo, ou deixá-lo pensar que descobrira por si mesmo". De qualquer forma, o aluno era excessivamente convencido do próprio talento para permitir que alguém lhe dissesse o que devia fazer.

Quando questionado sobre a aparente ingratidão do ex-aluno, que não o citava como mestre, Guerrero dizia: "Se Glenn acha que não aprendeu nada comigo, é o maior cumprimento que pode me fazer". No fundo, queria dizer que, para um talento como aquele, a única coisa a fazer era conduzi-lo em direção à realização de seu potencial. Mesmo porque o aluno costumava ser agressivo com os professores: "Tudo o que existe para aprender sobre como tocar piano pode ser ensinado em meia hora".

O NOVIÇO REBELDE


Aos 15 anos, Gould começou a carreira de concertista profissional. Ganhou US$ 250, sua parte na bilheteria. Mais tarde, em 1962, ele disse de si mesmo nessa época: "Eu odiava noventa e cinco por cento de toda a música, de todos os períodos". Opinião forte demais para um garoto, ainda que genial.

Em 1956, aos 25 anos, Glenn Gould se tornou "estrela internacional", com uma marcante interpretação das "Goldberg Variations", de Bach, que o levou no ano seguinte à Rússia, no auge da Guerra Fria, em evidente desprezo pela política de beligerância então reinante. Em abril de 1964, com apenas 31 anos, participou de seu último recital. Ou seja, a carreira de concertista durou apenas oito anos. Conhecendo o potencial do rádio, da televisão e do disco, dedicou o resto da vida a gravações.


Em outubro de 1982, poucos dias depois de completar 50 anos, morreu de derrame, em Toronto, cidade que nunca abandonou.Uma vida relativamente longa para quem comia apenas uma vez por dia e, por ocasião dos concertos, costumava jejuar completamente. "Me sentirei culpado se comer mais", justificava.Glenn Gould permanece icônico entre os apreciadores de piano, em especial dos que gostam de Bach ou Schoenberg. Para quem quase nunca saiu da provinciana Toronto, o garoto enrustido até que foi longe demais.


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